terça-feira, 29 de setembro de 2009

Blogue----------------Fernando Pinto do Amaral

Mantivera no fim da adolescência
aquilo a que chamava simplesmente
o seu diário íntimo:
páginas manuscritas onde ardiam
rastilhos de mil sonhos que rasgavam
as mordaças da angústia social,
a timidez tão própria da idade.

Nessa caligrafia cuja cor
fora ainda a do sangue
colheu a energia necessária
para atravessar como um sonâmbulo
o ordálio daquela juventude,
o seu incandescente calendário
de amizades vorazes, tão velozes
como os amores que julgava eternos
e outras feridas mal cauterizadas.

Hoje quase não volta a essas páginas:
estamos no século XXI
e em vez do diário de outros tempos
mantém agora um blogue
onde todos os dias extravasa
recados, atitudes, confissões,
coisas no fundo tão inofensivas
como o fogo que outrora lhe acendia
as frases lancinantes
_embora hoje em dia quando escreve
tenha por um momento a ilusão
de que as suas palavras continuam
a propagar ainda o mesmo vírus,
e a alimentar, quem sabe, os mesmos
sonhos
sempre que alguém desconhecido as ler
como quem só assim então escutasse
um segredo na noite do mundo.

Mas, apesar de todo o entusiasmo
que o mantém acordado por noites sem fim,
ele adivinha que também virá
um dia a abandonar sem saber como
o seu actual vício solitário
e dentro de alguns anos, ao reler
as frases arquivadas no computador,
talvez tudo isso lhe pareça então
fruto de gestos tão adolescentes
como os que antigamente preenchiam
esses cadernos amarelecidos
e hoje sepultados para sempre
em esquecidas gavetas de outro século.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

SETEMBRO---------------Afonso Lopes Vieira

Que beleza de gesto
o das árvores todas, ofertando
tudo o que têm!

Seu coração magnânimo e modesto,
tão obscuro e tão bom, tudo está dando
com sorrisos de noiva e carinhos de mãe.

Setembro, com seu carinho,
abre o regaço cheio de produtos:
dá-nos a força rubra e ardente do vinho,
e a graça luminosa,
essa luz saborosa
que perfuma e que aloira a polpa clara aos frutos.

Na postura das coisas se descobre
este esforço gigante e humilde: a criação...

Uma cepa de vinho é uma mãozinha pobre,
consumida e torcida de aflição,
que sofreu e penou, chorou, obscura,
passou dias de luto e de amargura
e se fartou de chorar,
para poder criar,
contra a sanha da geada e do escalracho,
o seu filho jovial e perfumado_ o cacho!...

E aquela macieira adolescente
já tem essa risonha sisudez,
deliciosa!
duma menina e moça que pressente
que a vida é feita da alegria dolorosa,
vitoriosa e ansiosa,
de viver...

Mas já depois que os frutos são colhidos,
as árvores, as santas indulgentes,
hão-de sentir dos corpos doloridos,
por ilusão confusa dos sentidos,
os frutos ainda pendentes.

Vou caminhando, nesta luz do Outono,
_o ar é de oiro, a terra é toda de oiro
e a luz redoira esse tesoiro,_
por um pomar que foi todo ceifado,
e a afanosa mão do dono
deixou deserto de aquela outra flor
que é o fruto redondo e perfumado,
gerado com mimo e dor.

Mas as árvores, as leais amigas,
com as suas rugosas mãos antigas,
alongam sempre na largueza do ar
seus grandes gestos de dar.

E (dir-se-ia) pois que ainda estendem
suas mãos generosas, maternais,
de onde os frutos agora já não pendem,
_ têm pena de não dar mais!

PSICHIS-----------Rosa Garcia Costa

Libre y perfecta,
Iluminada en su sonrisa clara,
Con los cabellos llenos de rocio,
Se levanta en el alba.


Sus brazos sienten la fruicion del vuelo,
Sus pies emergen de la hierva tierna;
Le dá la luz espiritual de arriba
Y la fragrancia de la madre Tierra.


Limpia; serena, original, perfecta,
Será mujer ó estatua.
Visibles tiene, en las espaldas nobles,
Rudimentos de alas.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

MANIFESTO

Assumo-me, definitivamente, como sou. Inteira. Contraditória. Afectuosa. Possessiva. Insegura. Protectora, maternal. Humilde e, ao mesmo tempo, com um imenso orgulho que me impele, no arrepio da vida... Introvertida, e com uma necessidade absoluta e patética de me expor, em situações em que mais me valeria deitar-me num oco e tapar-me com dignidade. Pessimista militante, trabalhando afanosamente um optimismo, irrealista com certeza, e portanto tão difícil de alcançar... Sentimental e emotiva, testando os limites, beirando o abismo, reagindo atabalhoadamente aos desapontamentos que advêm da minha relação com os outros... Sou excessiva. Dou-me muito, mas sempre a correspondência fica aquém das minhas expectativas... Embora pouca coisa baste para me alegrar e fazer sentir compensada. Não me prometam o que não tencionam ou podem dar. Jamais esquecerei a promessa nem a falha. Se antes a interacção insatisfatória dos relacionamentos me levava a esconder-me num canto e chorar, hoje revisto-me de uma emoção eriçada de espinhos, reclamo da injustiça, ou, se percebo que nada mudará, e nunca me darão razão ou melhorarão o desempenho, afasto-me, a distanciação que aprendi para me defender e que também é dolorosa, pois implica desinvestimento afectivo, que me é antinatural. Egocêntrica, com certeza. Aceito a definição. E no entanto sou capaz de anular-me durante muito tempo, tentando formatar-me e ajustar-me em moldes supostamente naturais. Mas não acreditem que o farei indefinidamente... Um belo dia, as asas teimam em crescer, em romper ligaduras, amarras e pele, se vejo que o sacrifício é inútil, ou dura demais, sem esperança à vista, salto fora da canoa furada, tentando sobreviver... Mas como sou fatalista
e agarrada aos meus fantasmas, facilmente poderei retroceder, retomar um ciclo soturno, por crer que devo, ou que o mereço.
Desajeitada e pouco prática aceito experimentar algo novo, durante algum tempo, até desistir,
por perceber uma tremenda falta de jeito. Cada um é para o que nasce, e ninguém é melhor que ninguém.
Extravagante. Entusiasta. Generosa. Com um imenso prazer de dar. Pouco reivindicativa, mas exigente. Hipersensível. Adorando fazer coisas pelos outros. Gosto de reconhecimento, embora não seja imprescindível. Influenciável, nem sempre para meu bem. Sensível. Desprotegida, mas sabendo responder a "terapias de choque". Extremamente autocrítica, procuro infatigavelmente os meus erros, e tento entender os outros. Quem sou eu para julgar ou querer similitudes nos outros?
Busco agora cultivar uma auto-estima que sempre foi deficitária... Penso estar a progredir nesse sentido.
Até, aventurando-me pela geografia do corpo, vejo-me sem artifícios, obesa, porque como as emoções; diabética, sou viciada em doces. Aprendi desde que nasci que alimentos agradáveis equivalem a afectos, e, na ausência destes, não resisto. O que me deixa extremamente culpada, pois sei que estou a cometer um suicídio lento. Que a minha Fé não desculpa. Os sentimentos de culpa são recorrentes e habituais a propósito de tudo e de nada. Conheço-os de sempre.
Voltando à minha aparência física: Não sou bonita que espante, nem feia que meta medo. Hoje estou contente com o que sou. Cada imperfeição, cada ruga, cada cicatriz é o resultado de um sentimento, de um acontecimento tatuado em mim, e aceito-os, a uns e outros prazerosamente.
Tenho , por vezes, pena de,nos meus verdes anos, quando era magra, elegante, e jovem, sobretudo jovem, e os meus olhos eram meigos e aveludados, não me ter dado conta, encerrada na minha timidez imensa, na minha crónica falta de amor-próprio. Se alguém mo referia, encolhia-me envergonhada e incrédula. Podia ser desconfiada na mesma, e devia, mas gostava de ter sido mais confiante em mim, de ter sabido valorizar-me.
O que interessa agora é que me estimo. Vou pensar em mim. No que me agrada . Tenho de ser importante para mim mesma. Afinal, vou reconhecer sem modéstia, que sou a fulana mais "gente boa" que eu conheço. Com perdão dos bons amigos e das pessoas confiáveis e éticas com quem me relaciono. E são muitas, felizmente.
Uma longa vida de passividade, e descubro-me, de repente, corajosa. Não temerária ou imprudente, mas vou atrás do que me é importante, da justiça, dos meus valores. Amando as palavras, gostando de verbalizar, escrevendo, oralmente bloqueio, ou enrolo-me toda, ou vejo-me enredada em mal entendidos que não quis, e querendo desfazê-los, mais me enterro. Tenho de reconhecer, talvez, por tanto me pôr a jeito, que não devo ser muito inteligente. E dou-me bem conta das pequenas traições, de pequenas ou grandes inconsiderações, de quando insultam a minha inteligência com pequenas mentiras, omissões ou inconfidências que traem descaradamente a minha confiança, que fica abalada, garanto. E, no entanto, persisto.