quinta-feira, 18 de junho de 2009

O TEJO CORRE NO TEJO------Alexandre O'Neill

Tu que passas por mim tão indiferente,
no teu correr vazio de sentido,
na memória que sobes lentamente,
do mar para a nascente,
és o curso do tempo já vivido.

Não,Tejo,
não és tu que em mim te vês,
_sou eu que em ti me vejo!

Por isso, à tua beira se demora
aquele que a saudade ainda trespassa,
repetindo a lição, que não decora,
de ser, aqui e agora,
só um homem a olhar para o que passa.

Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
_sou eu que em ti me vejo!

Um voo desferido é uma gaivota,
não é o voo da imaginação;
gritos não são agoiros, são a lota...
Vá, não faças batota,
deixa ficar as coisas onde estão...

Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
_sou eu que em ti me vejo!

domingo, 14 de junho de 2009

SEM SAÍDA------------Fernando Pinto do Amaral

Da tua sombra nasce a minha luz
do teu puro silêncio a minha fala
e ainda é teu o olhar que me seduz
no presságio do sono que me embala

Queria poder amar-te sem motivo
já sem corpo nem alma nem passado
quando só tu me provas que estou vivo
no teu sorriso mais que desesperado

Vem ter comigo, vem, enquanto a vida
nos abandona à flor do seu segredo:
ambos sabemos que não há saída

fora do nosso amor_ ainda é cedo
e a noite é uma criança distraída
até ficarmos sós: não tenhas medo

SEDE-------------Fernando Pinto do Amaral

Aproxima-se o verão_ tens de saber
decifrar essa música,
iluminar ainda com o teu sangue
a raiz mais secreta, a madrugada
onde nasce a alegria. Não te ocultes
no solitário espelho das palavras
ou nesse labirinto onde inventaste
mil razões sem razão.


Aprende a respirar.
É uma velha ciência, como sabes,
e há-de recordar-te
a pura matemática da pele
quando o verão despertar mais uma vez
à flor da boca a tua sede.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

MA SOEUR LA PLUIE-- Charles Van Lerberghé

Ma soeur la Pluie,
La belle e tiède pluie d'été,
Doucement vole, doucement fuit,
A travers les airs mouillés.

Tout son collier de blanches perles
Dans le ciel bleu s'est délié.
Chantez les merles,
Dansez les pies!
Parmi les branches qu'elle plie,
Dansez les fleurs, chantez les nids;
Tout ce qui vient du ciel est béni.

De ma bouche elle approche
Ses lèvres humides de fraises des bois,
Rit, et me touche,
Partout à la fois,
De ses milliers de petits doigts.

Sur des tapis de fleurs sonores,
De l'aurore jusqu'au soir
Et du soir jusqu'à l'aurore,
Elle pleut et pleut encore,
Autant qu'elle peut pleuvoir.

Puis vient le soleil qui essuie.
De ses cheveux d'or,
Les pieds de la Pluie.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

LA BELLE ÉPOQUE-------------------1966

Se eu fosse uma donzela delicada
De alvos punhos de renda
E lindos bandós
Se vivesse numa corte de sonho
Num palácio de encantamento
As noites para mim seriam dias
E ao luar escutaria os mil segredos
Que os regatos sussurram e insinuam


Se eu fosse uma bela dama
De caracóis de oiro
Olhos cor de esperança
E lábios de coral
Se tangesse a harpa angelical
Se entoasse lindas árias
Co'a minha voz de cristal
nos longos serões seria admirada
E as estrelas longínquas
Quedar-se-iam enleadas


Se eu fosse uma condessa linda
De folhos engomados jóias cintilantes
sapatinhos de cetim
Brilharia nos salões
Admirada adulada acarinhada
Estonteante e caprichosa
Destroçaria corações
e as damas invejosas
Por trás dos leques de plumas
Entre risinhos nervosos
Morder-se-iam despeitadas


Ao ecoar uma valsa
Deslizaria contente
Pelo braço do meu par
(Um belo príncipe encantado
Que comigo quer casar)
No ardor "desse" momento
Na magia desse olhar
Esqueceria de bom grado
A minha efémera glória
De beleza e sedução


Mas cansada de lisonjas
Falso brilho e ostentação
Entre suspiros saudosos
No leito alto e delicado
Fitando os olhos extáticos
No fulgurante dossel
Expiraria só bela e pálida
Tísica entediada melancólica
(Apenas a sombra de um remorso
Da minha cândida perfídia
Viria perturbar aquela paz)

MÃE----------------------1967(em plena guerra colonial)

Quisera dizer-te
Em palavras de encanto
O que sinto por ti.
Quisera ter voz
E cantar o carinho
Que te dedico, Mãe...
Mas, sabes, não tenho coragem
Para exprimir certas coisas!)
Não sentes o turbilhão
Em que o mundo se revolve?
As vagas de dor e angústia
Que fazem chorar outras mães?!...
E os meninos sem lar,
Sem uma face radiosa e terna
P'ra beijar
Como a tua, Mãe!?...
Não posso dizer-te
Que te quero muito,
Que em meu peito vive
Uma enorme gratidão
Porque a guerra (a Guerra, Mãe!)
Faz murchar
As flores da Inocência,
Calar as vozes da Consciência,
E nascer dentro de nós
Mensagens mais vivas e prementes
Do que essa que queria confiar-te, Mãe,
(Até porque já a sabes...)
Mãe,
Evoca comigo as 1000000 crianças tristes
Sem abrigo.
As mães que choram os filhos
que fazem guerra pela Paz!

Mãe
(Estás a ouvir, Mãe?)
O beijo que queria dar-te
Morreu agora num soluço
de cansaço e frustração.
Amo-te, Mãe!
Mas, por favor, com guerra, Não!

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Soneto Científico a Fingir---Ana Luísa Amaral

Dar o mote ao amor. Glosar o tema
tantas vezes que assuste o pensamento.
Se for antigo, seja. Mas é belo
e como a arte: nem útil nem moral.

Que me interessa que seja por soneto
em vez de verso ou linha desvastada?
O soneto é antigo? pois que seja:
também o mundo é e ainda existe.

Só não vejo vantagens pela rima.
Dir-me-ão que é limite: deixa ser.
Se me dobro demais por ser mulher
(esta rimou, mas foi só por acaso)

Se me dobro demais, dizia eu,
não consigo falar-me como devo,
ou seja, na mentira que é o verso,
ou seja, na mentira do que mostro.

E se é soneto coxo, não faz mal.
E se não tem tercetos, paciência:
dar o mote ao amor, glosar o tema,
e depois desviar. Isso é ciência!

terça-feira, 2 de junho de 2009

PARA TI, JOVEM-----------------1967

Detém-te, Mocidade!
Escuta a melodiosa sinfonia
Que se liberta do universo
Que te rodeia.
Ouve,
Sufoca a tua Juventude
Ardente.
Apaga a interrogação
Que te cresce no peito!
O Mundo é teu...
Alegra-o com as tuas gargalhadas...!
Detém-te e escuta:
Ouvirás o marulhar das vagas
E o grito selvagem da gaivota...
A brisa abraçada aos coqueiros
A murmurar segredos
Na mesma linguagem que tu falas...
Enterra os pés na areia.
Beija as ondas do mar.
Volteia os teus sonhos
Loucos
Nas trevas do mundo
Absorto.
Sentirás a alma libertar-se.
Despertarás... E sabendo
Que te irmanas
Aos seres que vibram
Contigo
Hás-de rir, feliz!
Sim, Jovem:
Segue confiante a tua estrada.
Escuta a Vida
E espera...
A Paz mora lá...

CONSELHO-------------Miguel Torga

Salta, discretamente, a página do amor
No Livro de Horas.
Não leias mal o que já leste bem.
Emocionado, choras
A cada passo,
E tornas baço
O brilho que ela tem.

Deixa o texto arquivado na lembrança.
Passa adiante e cobre-o de pudor.
No jardim resta ainda tanta flor
Que podes desfolhar
Sem lágrimas na voz!...
Quem soube ter, sabe renunciar...
Há laudas de silêncio em todos nós.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

VOZ ACTIVA-----------------------Miguel Torga

Canta, poeta, canta!
Violenta o silêncio conformado.
Cega com outra luz a luz do dia.
Desassossega o mundo sossegado.
Ensina a cada alma a sua rebeldia.

ESPERANÇA--------------Miguel Torga

Canto.
Mas o meu canto é triste.
Não sou capaz de nenhum outro, agora.
Uma ilusão,
Tolhida na amplidão
Que lhe sonhei...
Felizmente que sei
Cantar sem pressa.
Que sei recomeçar...
Que sei que há uma promessa
No acto de cantar...