quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Natal, e não Dezembro------------------David Mourão Ferreira

Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos depressa, em qualquer sítio,
Porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

NATAL----------Manuel Sérgio

Enquanto a chuva
Escorrer da minha vidraça
E furar o telhado
Daquele farrapo de homem que além passa
Enquanto o pão
Não entrar com a Justiça
Lado a lado
Mão a mão
Nem Jesus vem
Andar pelos caminhos onde os outros vão
Um dia
Quando for Natal
(E já não for Dezembro)
E o mundo for o espaço
Onde cabe
Um só abraço
Então
Jesus virá
E será
À flor de tudo o Redentor
Universal
(Quando o Homem quiser
Será Natal)

NATAL------------Álvaro Feijó

Foi numa cama de folhelho,
entre lençóis de estopa suja
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
e foi roçar nas bordas dos caminhos
manadas de ervas
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das paredes
e o crepitar do fogo,
enroscada num cesto vindimeiro,
que não havia berço
naquela casa.
E ninguém conta a história do menino
que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroas de espinhos
mas coroas de baionetas
postas até ao fundo do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história do menino.
Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo.

ORAÇÂO DE NATAL----------------António Cabral

Perdão, Senhor, para quantos
na noite de Natal
confundem o teu nome
com o seu desejo.

KYRIE----------------JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS

Em nome dos que choram,
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e os destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Os Degraus do Tempo---------Rosa Alice Branco

Costumava sentar-me no degrau mais alto
e pela janela via as árvores balouçarem
no silêncio da casa, o silêncio
de ter estado ali há muito tempo
esperando que viesses como agora espero
que o tempo se desdobre na memória
que te guarda.
O mundo era infinito
e a minha existência estava no teu rosto
à espera de um gesto que a desenhasse
para que pudesses nascer todos os dias. Sentados no degrau mais alto
escutávamos o rumor das árvores,
a folha de um choupo a cair na água
e os círculos minúsculos que se afastavam
até desaparecerem
no vocabulário das palavras curtas
rabiscadas no vidro da janela.

Era assim o mundo
na ignorância de que uma lágrima
se soma às vezes ao destino
e é suficiente para alterar o movimento da terra
e o sabor das letras pisadas
fermentando sozinhas na casa
enquanto o amanhã atravessa o umbral da porta
acima de todas as virtudes,
alimentando o vício de voltar atrás
e subir até ao degrau mais alto
para conceder o último desejo.

GRAÇA PIRES

Manchado de sal, o silêncio escorre-nos na cara.
Os meus olhos tropeçam em raízes antigas
e movem-se-me, na memória, indecifráveis sinais:
marcas de nascimento, lugares e pessoas, gestos
e palavras. É madrugada. Os pássaros evitam
os voos rasantes, porque as últimas sombras
da noite lhes ferem as pupilas.

O POEMA ENSINA A CAIR -----------------LUIZA NETO JORGE

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra se abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

FUGAS

Porque me entretêm tanto as séries policiais? A acção. O envolvimento humano. O envolvimento científico e rigoroso (?). Os casos românticos entre os agentes da lei. As estórias dos criminosos. A futilidade disto tudo... Necessária e qb. As investigações... As motivações. (Há sempre uma razão a desencadear uma acção, acredito...) A eterna luta entre o Bem e o Mal, sendo que as fronteiras são definidas, e por mais ardiloso e hábil que se esconda o "outro" lado, as situações raro se extremam e o Bem acaba por vencer. Entender o perfil tortuoso dos prevaricadores. Conhecê-los por dentro.
As investigações forenses.
Estendo a minha mágoa na mesa de autópsias e deixo cortar, retalhar, sopesar, analisar... Espectadora externa e de mim mesma... E penso que funciona. No pouco tempo que dedico à TV, é das pouquíssimas coisas que consigo ver. Talvez quando me curar me canse. Também me cansei das novelas, que já não suporto. Na ficção os comportamentos obedecem a alguma lógica. Há motivos e remédios. E tudo, normalmente acaba bem. A realidade é diferente. De certo modo as personagens reais parecem imprevisíveis. A razão a que obedecem é superior e oculta, não se vislumbra o fim dos mistérios, o enredo é mais decepcionante. Por falta de Fé. Eu sei. E de Amor. De Caridade. Parece que estou a ficar novamente moralista. Fico por aqui.