domingo, 31 de maio de 2009

LETREIRO------------------------Miguel Torga

Porque não sei mentir,
Não vos engano:
Nasci subversivo.
A começar por mim_ meu principal motivo
De insatisfação_,
Diante de qualquer adoração,
Ajuízo.
Não me sei conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso.

LIMBO------------------Miguel Torga

É o pranto
Que ninguém chora
Que eu agora
Canto.

E aquele amor constante,
Desenganado,
Que nunca teve amante
Nem amado.

E o gesto cordial que se não fez,
Nem faz,
E fica por detrás
Da timidez.

E o imortal poema
Por acontecer,
Irmão do vento, seu rival sem asas:
Lume a fugir das brasas
Antes de a lenha arder.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

INTIMIDADE-----------------------1968

Amo-te!
Dizê-lo quebra o encanto
Dos ecos silenciosos
Que o sentimento não esconde?
Que importa?!...
Se o gritam os meus dedos
Viajando ansiosos
Pelas linhas do teu rosto!...
Se o lês claro em meus olhos
Implorando mais ternura
Em luar negro de esperança
Vazando ternura em ti...
Amo-te! Senti-lo nos teus lábios
É íntimo
Veemente
Convincente
Então deixa-me ser em palavras
A unidade que vivemos
No imenso silêncio prenhe de sonhos
Ilusões tão belas
Sorrindo em nós.
Amo-te.
Não protestes... Não, tens de sabê-lo.
Que importa?!
Se a vida é uma folha morta
Vogando em ondas de amor!...

DIVAGANDO...--------------------------1972

O segredo
está no estar
em cada minuto
da vida
como se no instante
seguinte
o mundo fosse acabar


Como se nada mais
houvesse
capaz de nos arrancar
à importância
do ser e do estar
permanecer e ficar

Só assim a vida é Vida
e algo se pode achar
construir ou arrasar
Ou então viver somente
ao impulso do presente.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Theme For Song-----"Our moment to love"--1966

Come just at me, my darling...
Remember, I love you so much...
The sun is setting
And the sky is red:
This is our moment to love.
Drive away the grey clouds
From your heart.
Always remember:
I belong to you and you belong to me
Forever.
Let's walk among the twinkling stars.
Let's hope our pink dreams
Will become true.
Toguether we'll go to the happyness...
Kiss me sweet
And forget the world...
At that very moment
Only you and me
And our love...

DESESPERO---------------------1966

Se eu esmorecer
De fadiga
Abandona-me no limiar da vida...
Estende abismos e penhascos
Para além dos meus olhos
Que se alongam
Chorosos na distância.
Estou cansada
Guia-me na desolação
Do nada que penetra em mim,
Mas conduz-me pelos atalhos
Mais penosos...
Tenho sede,
Dá-me fel...
Tenho fome,
Dá-me escolhos...
Afasta de mim o desespero
Da busca do não-sei-quê
Sabendo, por de mais, o que procuro...
Quero gritar ao mundo
E a Deus
Que o verme que vês
Revolver-se na lama
a teus pés
Sou Eu...!
Humilhada,
Elevando-me na desgraça...
Desprezada,
Orgulhosa da minha miséria...
Despojada,
Avara do meu nada...

AURORA-------------------Adolfo Casais Monteiro

A poesia não é voz_é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:

voo sem pássaro dentro.

DE UMA POESIA...-------------Jorge de Sena

De uma poesia esperam
tanta cousa!
E logo desesperam
senão ousa.

Mas a poesia nada tem com isso.
Ela não diz nem faz,
nem está sequer ao teu, ao meu serviço.
Serão visões de paz,
aquilo que ela traz:
mas quanta guerra para falar nisso!

Uma só coisa ela será, se for
(e espera ou desespera
conforme o meu, o teu, o nosso amor):
Inverno ou Primavera,
e sempre uma outra dor.

SEMANA AFRICANA--------------------2009

Depois de ter sonhado um ano inteiro com as actividades e entretenimentos proporcionados pela UTIS nesta semana tão especial, aqui está ela... E eu, carregando uma "juventude acumulada" com excesso de IVA, mazelas e maleitas, sem poder aproveitar... É de sentir uma certa raiva! Mas para quê? A PDI, ou DNA (data de nascimento antiga), cobram o seu tributo... Além disso, também não havia muito a esperar de quem nasceu com 1,700kg, de tempo, e escolheu bem. Adiante.
Hoje estive lá, no Teatro Sá da Bandeira em Santarém, no meu mester de contadora de histórias... de África, claro. A meninos do jardim escola. Foram momentos muito bem passados: com uma pequena lenda expliquei, de uma forma fabulística, isto é, simples, divertida e didáctica, porque é que as galinhas esgaravatam a terra, e a razão das lebres terem a cauda curta, e também contei a história de Mariam e a Papaia , muito ternurenta e combatendo naqueles espíritos pequeninos o egoísmo, fomentando a ideia de partilha e de afectos familiares. Amanhã contarei a crianças de 7, 8 anos a estória de "O Leão Vegetariano", engraçadíssima, "A Maldade da Hiena", e" A estória de Madevo", de Paula Ferraz. Esta desvenda, de forma hilariante, os malefícios da vaidade e da gabarolice. São momentos muito bons, em que me divirto tanto ou mais que o público pequenino. À tarde, se houver assistência suficiente, mais do que uma pessoa interessada, orientarei um workshop de construção de máscaras africanas, tradicionais, e cabeças vestíveis de animais. Depois haverá projecção de dvds e colóquio, gastronomia africana, música... Sempre haverá música e eu regressarei a casa sem assistir aos espectáculos, sem participar na animação... Sim, que ouvir aquela música contagiante sem conseguir dançar é uma tortura a que não me apetece submeter-me. No Sábado faremos, como de costume, uma tarde de poesia africana, com os meus amigos escritores dos Cadernos Moçambicanos--Manguana (Manhã). A seguir, as senhoras batucadeiras da Cova da Moura deliciar-nos-ão com a exibição do tradicional batuque de Cabo Verde, contando "cosas de mudjer". Que ferro não ser capaz de saltar para o meio delas, como de outras vezes, e batucar, e sacudir, e encher-me de júbilo e frenesim!
Mas para o ano vingo-me! Se Deus quiser hei-de ter vida e saúde e disposição para tirar a barriga de misérias! Quem quer juntar-se a nós? Há muitas mais actividades e focos de interesse!...

segunda-feira, 25 de maio de 2009

ALUCINAÇÃO---------------------1964

Esta noite...
Senti na minha fronte
Escaldante
O beijo gelado
Da morte...


Percebi
Vultos alados... roçarem as suas asas
Brancas
No meu corpo febril
Vi figuras hirtas
Rostos etéreos... seráficos...
Translúcidos
Esqueletos tétricos irónicos
Que dançando um bailado
Macabro
Me arrastavam
Para a quietude
Doce e calma
De uma tumba...

DEMÊNCIA-------------------1964

Sacodem-me o corpo
Frémitos de loucura...
Avermelham-se as faces
No ardor da febre.
Uma sombra
Patética oculta
E vela um clarão vivo,
Sinistro,
De demência...


E o terrível,
Fantasmagórico pesadelo
Volta...
Voltam de novo, com ele,
Mundos disformes,
Difusos,
Para me arrastar...
Para me obrigarem a despenhar
No vácuo do esquecimento...
Gritos pungentes,
Vibrantes,
Ecoam no meu cérebro cansado
E fazem vibrar os meus nervos
Lassos, como hastes tensas de um diapasão...


E sobrevem então
O terror!
O terror indeciso
De algo indefinido
E vago... Do nada...
O medo atroz
De enlouquecer!
Como se não estivesse
Quase louca...


Eu, pobre farrapo humano
Revolto-me, na minha mesquinhez...,
E odeio aqueles
Que de mim têm compaixão...!
Afundo-me, cada vez mais,
no Abismo de trevas,
E nada posso fazer
Para as dissipar...
Para regressar à luz
...E à vida...

BALADA DA AUSÊNCIA---------------1967

Quando regressares
Será tarde de mais
Não terei nos lábios
O suave encanto
Dos beijos perdidos
O brilho da ausência
Deixará vazios os olhos doridos
De não te encontrar
Quando voltares
E a ternura te trouxer
Não terão teus braços
As carícias de sonho
Que ansiei
A ilusão e a saudade
Morrerão dentro de nós


Mas vem Amor!
Vem!
Traz no teu sorriso
O jeito terno e triste
da minha recordação
Enche as mãos de quimeras
E enfeita os meus cabelos
Com um toucado de estrelas e ideais
Sem quebrar o silêncio
Manso e ledo
Prende aos dedos mornos
O fio da vida
Deixa pulsar junto ao teu
Meu coração.

sábado, 23 de maio de 2009

VIDA----------------------------------1966

Vida
É ter-te, amor,
Sempre ao meu lado...
É amar-te assim,
Perdidamente,
E dizer-to baixinho,
Numa prece...
Prender ao meu
O teu olhar.
Olvidar a angústia.
Crer no bem...
Vida é fazer meus
Esses teus braços
E erguê-los ao céu
Em muda súplica...
Vida é o delírio
Que me aquece.
É o sonho fugaz
Que me enlouquece...
É segurar a tua mão
Na minha,
Docemente,
Reclinar a fronte
No teu peito
E expirar lentamente...

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Quase Natal----------------------------2005

Era dia um de Outubro. Num ciber-café aconchegado dedicado também à literatura e até a literatices. Foi um acontecimento animado. Amigos bons e recentes, vindos de longe... E poesia. Palmas. Emoção. Contentamento. Por estarmos juntos, por a nossa arte ser tão bem acolhida.
Já tinha havido outros encontros semelhantes. No último antes desse, na Quinta do Conde, um colóquio sobre migrações, Carlos Gil, o meu irmão, escritor, foi muito aplaudido pela exposição das suas emoções, pela declaração da sua imensa saudade de Moçambique, dos sonhos gorados, mas ultrapassados pelas vivências ricas de liberdade e partilha, dos sabores, dos cheiros, das paisagens a perder de vista. E eu, que sem me dar conta, aproveitando a deixa das migrações, falei de mim, das viagens que faço por dentro, das raízes que não sei cortar e dissemino quase a esmo, fugi ao tema inadvertidamente. Porém, tendo-me redimido lendo no fim da minha intervenção o meu poema "Batuque", recebi felicitações, e um abraço da escritora Felícia Costa, Vereadora da Cultura de Sesimbra.
Ambos fomos brindados pelas lágrimas comovidas e os abraços da doce Olga, colega de letras, uma africana lindíssima, que disse ter encontrado dois irmãos.
Conto isto para justificar o meu engano, a minha emoção.
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Quando demos por terminada a sessão, o Delmar, outro poeta e um bom amigo, aproximou-se de mim, abriu-me a mão direita e nela depositou algo pequeno, duro e liso, agradável ao tacto. Cerrando-me os dedos em volta da pequena escultua de madeira rija recomendou: _Guarde. Foi um amigo meu, escultor maconde, que lha mandou, e outra igual para o Gil. PORQUE VOCÊS SÃO IRMÃOS: (O destaque é meu): _Não os conhece, mas tenho-lhe falado de vós.
É indiscritível em palavras tão grande emoção.
Já tarde da noite, na minha cama, com a cabecinha de pau preto fechada na mão, não conseguia adormecer. As lágrimas de felicidade inundavam-me os olhos e rolavam-me pela face. Agradeci a Deus, vezes sem conta, a alegria de ter ganho tão bons amigos, e dos meus sentimentos encontrarem nos outros ecos tão calorosos.
Tempos depois encontrei o meu irmão que me contou que o escultor amigo do Delmar tinha ligado, e pedira para lhe providenciar um espaço e a oportunidade de mostrar os seus trabalhos.
Não me interessei por outros desenvolvimentos do assunto.
Isto é a Vida Real. É normal.A decepção é minha. Mea Culpa. Eu é que sou uma sonhadora.
Não. Não foi Natal. Era Outono.As folhas caducas amarelecidas já tombavam...
A desilusão espreita sempre a realidade.
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É por isso que engordo. Como as emoções, e se havia de digerir as boas e doces, que não necessitam de aditivo, por muito positivas que elas cheguem, deixam sempre um travo amargo,um rasto de desapontamento. Sou demasiado exigente, eu sei... Mas se me dou e abro as mãos, credulamente espero encontrar reciprocidade. Estou deslocada por certo, serei sempre inadaptada, sem conseguir ser feliz.

DOCE MELODIA---------------------------1968

Vem!
De manso de manso
P'la noite cerrada
Vem!
Rolando o teu sonho
Na minha balada
Vem!
Trazendo em teus braços
O calor e a vida
Vem!
Em teus lábios o ardor
De rubra chama fulgente
Vem!! Chorando chorando
Na noite abafada
Espero
Por ti meu amor
Sem ti sem ninguém
Minha alma cativa
É angústia e é dor
sem ti meu amor
A vida é vazia
É triste também.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

"Era uma vez..."-----------------------------1969

Um búzio
Que cabe na palma da mão
Lustroso pintado
Rolado encerado
Fazia um vistão
Estava ali caído
Na areia branca
A bronzear ao sol
A dormitar talvez... não; a sonhar...
E o arfar do sonho
Era o bramir do mar...
Uma voz longínqua a embalar...
Mansinho... Sem ralhar...
(Tão enganoso é o mar!)
E o búzio a sonhar...
Uma vela panda a despontar...
Um grito de coragem a alvejar...
O velejador encoberto
Afronta o mar.
Animoso. Aventureiro!
É o Povo Marinheiro
Que veio aqui ancorar!
E Moçambique cresceu
A ouvir o amansar
Da terra morena
Por gente valente
De alma grande e quente
E o rugido do mar
Forte ou dolente
Como a voz do búzio
Que estava a sonhar...
É a alma do branco
Marinheira e audaz
E o coração do negro
Franco e pertinaz.

POEMA DO DESASSOSSEGO-----Contradições

Se penso distanciar-me,
já te cerco.

Se quero silenciar, digo o que sinto,
as palavras em golfadas consentidas.

Se o meu senso me dita dar-te espaço,
já o meu medo e anseio te sufocam.

Se o pudor me manda preservar-me,
logo a aflição me leva a procurar-te.

Desorientas-me,desorganizas-me, desconcertas-me
e conduzes-me
da alegria ingente à tristeza mais funda.

Meu doce amor, sonho impossível,
razão do meu viver desenganado
de mulher, só e carente,
partindo à míngua de afagos.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

VIÇO----------------------------1975

Pingos de verde
Em mataborrão encardido
Pinceladas de luz
Cor e alegria
Na sombria noite
De Inverno
É a terra abrindo-se
Em harmonia
No clímax da longa gestação
Reverdescendo
É o alucinante girar
Dos meus frustrados sonhos
Como fogo de artifício
Explodindo dentro de mim
É o Amor
É... Primavera.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Erótica----------------------------------1979

Crucifica-me na erva
E dá-me vida nova
Num abraço...
Vem amar junto às oliveiras
No cheiro bom a húmus
E a terra arada.
Quero sentir sob a pele
Torrões a esboroar-se
E sobre mim desmoronar-se o mundo:
Tu!
Os teus olhos por céu.
Tuas carícias- frescura.
O teu fogo- ardor.
Minha solidão- perdida.
Minha alegria- reencontrada.
Regressemos às origens.
Reinventemos o amor.

sábado, 16 de maio de 2009

(IN)COMPATIBILIDADES----------------------1978

Se opuseres
Um dique de silêncio
Em tuas veias azuis
Ficarei presa em redes
D'água
E a debater-me em vão...
Mas, se a barreira
For de espanto,
O meu signo de cristal
Rumará contra a corrente
Ao encontro do teu fundo,
De pupilas acesas
E medos calados e obscuros,
Para nele se fundir
E na inquietude
Repousar

sexta-feira, 15 de maio de 2009

FADO FALADO----------João Villaret

Fado triste. Fado negro das vielas
Onde a noite quando passa
Leva mais tempo a passar.
Ouve-se a voz, voz inspirada
De uma raça
Que o mundo em fora nos levou
P'lo azul do mar.
Se o Fado se canta e chora
Também se pode falar.

Uma história bem singela:
Bairro antigo, uma viela,
Um marinheiro gingão,
E a Emília Cigarreira,
Qu'inda tinha mais virtude
Que a própria Rosa Maria
Em dias de procissão
Da Senhora da Saúde.

Os beijos que ele lhe dava
Trazia-os ele de longe,
Trazia-os ele do mar.
Eram bravios e salgados.
E ao regressar à tardinha
O mulherio tagarela
De todo o bairro de Alfama
Cochichava em segredinhos
Que os sapatos dele e dela
Dormiam muito juntinhos
Debaixo da mesma cama.

Pela janela da Emília entrava a Lua...
E a guitarra, à esquina de uma rua,
Gemia dolente a soluçar...
E lá em casa... Mãos amorosas na guitarra
Que desgarra dor bizarra.
Mãos frementes de desejo.
Impacientes como um beijo.
Mãos de Fado, de pecado,
A guitarra a afagar
Como um corpo de mulher,
Para o despir e para o beijar.

Mas um dia... Mas um dia, Santo Deus,
Ele não veio.
Ela espera olhando a rua...
Meu Deus, que sofrer aquele!
O luar bate nas casas,
O luar bate na rua,
Mas não marca, mas não marca
A sombra dele!...

Procurou-o como doida.
E ao voltar de uma esquina,
Vê-o a ele, acompanhado,
Com outra ao lado, de braço dado.
Gingão, feliz, rufião.
Um ar fadista e bizarro,
Um cravo atrás da orelha
E preso à boca vermelha
O que resta de um cigarro.

Lume e cinza na viela.
Ela vê, que homem aquele!
O lume no peito dela.
A cinza no olhar dele.

E então o ciúme chegou.
Como lume queimou
O seu peito a sangrar.
Foi como vento que veio
Labareda a atear, a fogueira aumentar.
Foi a visão infernal,
A imagem do mal
Que no bairro surgiu.
Foi um amor que jurou.
Que jurou e mentiu.

Ah! Corre em vertigem num grito,
Direita ao maldito que a há-de perder.
Puxa a navalha: Canalha!
Não há quem te valha!
Tu tens de morrer!
Há alarido na viela.
Que mulher aquela!
Que paixão a sua!
E cai um corpo sangrando
Nas pedras da rua.

Mãos carinhosas, generosas,
Que não conhecem o rancor!
Mãos que o Fado compreendem,
E entendem sua dor.
Mãos que não mentem
Quando sentem
Outras mãos p'ra acarinhar.
Mãos que brigam! Que castigam!
Mas que sabem perdoar!

E pouco a pouco o amor regressou.
Como lume queimou
Essas bocas febris.
Foi o amor que voltou
E a desgraça tocou
Para ser mais feliz.
Foi uma luz renascida.
Um sonho na vida
De novo a surgir
Foi o Amor que voltou,
Que voltou a sorrir!

Ah! Há gargalhadas no ar
E o sol a brilhar
Tem gritos de cor.
Há alegria na viela
E em cada janela
Renasce uma flor.
Veio o perdão, e depois,
Felizes os dois
Lá vão lado a lado.
E digam lá se pode ou não
Falar-se o Fado.

OLVIDO e QUIETUD----------------------2007

En el silencio helado
y hondo de la negra noche
se eleva punzante
el canto del cisne moribundo
a expirar en el dolor
con suavidad
En un desafio
surcando el espacio
se junta al suyo
mi dolor
Hace en mi pecho
angustia e cansancio
lloro en vano
mi malogrado amor
Secar mi llanto desearia
pero la cruel pasión
que en mi vive
es fuego que arrasa
y me devora
Volverme insensible
quisiera
Dormir en el lago
donde el cisne
llora
Soñar con la ventura
de otrora

Paz e esquecimento"-------------------1965

No silêncio gélido
e profundo da negra noite
eleva-se pungente
a toada do cisne moribundo
a expirar na dor
suavemente
E num desafio
sulcando o espaço
junta-se à sua a minha dor
Há no meu peito
angústia e cansaço
Pranteio em vão meu malogrado amor
Secar meu pranto desejaria
mas a cruel paixão que em mim mora
é fogo que abrasa e me devora
Tornar-me insensível
quereria
Dormir no lago onde o cisne
chora
Sonhar com a ventura
de outrora

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Empatia

São as palavras
De dor
Sofridas usadas
Brandidas com raiva ou espadas empunhadas
Por dentro do silêncio
Desordenando as emoções
Ou mesmo as de lamento desamparado
Que encontram eco na minha mágoa
De cristal estilhaçado
Que reflecte as dores do mundo


E contudo sei rir
Também às vezes
Visito a alegria
Franqueia-me os portais
Que adentro em ímpetos sôfregos
Deslizando entre a sombra e qualquer lampejo de claridade
Alongo os braços no balanço de clarões espelhados
No ruído rodo a cabeça e rio
E logo lanço devagar os olhos para as frestas sinistras
Buscando alguma escondida
Aflição
Com medo do escuro
Do medo do medo
De fora
Mas já não quero mais
Vou lavar-me no esmalte
Da manhã clara
Recamada pelo oiro dos sonhos
Perlada do suor
Da noite mal dormida
Embora
Mas tranquila.

INSTANTE--------------------------1967

A nota
Que vibra
No arco da manhã
Não a desferirei
Nos meus versos
Não canto
A alegria
Inspirada na beleza
Matinal
Mas tão somente
A certeza
De estar viva
E amar o Sol

quarta-feira, 13 de maio de 2009

PRECE-------------------------------1966

Do meu palácio encantado, a Dor,
Na solidão, sou mística vestal...
Entoo salmos, oro com fervor,
Imploro a Deus um fim p'ra este mal...


Amei os sonhos dos meus vergéis em flor!
Todos sucumbem, maldição fatal!
Já se apagou dos olhos o fulgor:
É mais frágil a Ilusão que o cristal!


Encerrada na Torre da Tristeza
Fujo da Vida que me desprezou...
Uma sombra alada aos meus pés tombou...


A mágoa alacre com a Paz voltou...
Minha alma amarga comovida reza:
"Livrai-me desta Dor, desta Crueza!"

ANGÚSTIA---------------------------1966

Onde estão? Que é feito das minhas lágrimas?
(As que chorei, ferida, já secaram...
Só resta o sulco que amargas cavaram...)
Não essas... As que retenho estranguladas...,


As que afogo num soluço, magoadas,
Fugindo à dor que não aliviaram...
Quero saborear o sal que roubaram
À alma plena de ilusões e amarguras...


Desatar o nó que me prende à vida...
Gritar bem alto a dor que me tortura!
Sepultar p'ra sempre a esperança perdida.


Abandonar, sem pena, a desventura
Da obsessão de uma dor sofrida...
Chorar...Rezar... Ser simples... Boa... Pura...

Resignação-----------------------------1966

Quando a solidão
Me invade
E a dor se infiltra
Em meu ser
Tu vens até mim
Saudade
E recordas-me
A mágoa sentida
Que eu quero esquecer
Essa dor
Que jaz sob as cinzas
Já frias
De uma ilusão perdida
Cicias-me baixinho
(Só eu te posso ouvir...)
As palavras tão ternas
Que sonhei
E jamais ouvi
E eu penso
Que tu és o eco distante
Do amor que palpita
Ainda
Latente no meu peito amargurado
A recordação
De um romance
Falhado antes de começar
E saudade
Para não te culpar
Refugio-me
Numa resignação gelada
Sem esperança
E sem Fé...

Triste..., Mas Serena-------------------------1966

Na pungente
Amargura
Que me gela o ser
Chorei uma lágrima sentida
E pensei em ti
Com carinho enlevo
Com gratidão
Varri do espírito torturado
A mesquinhez egoísta
Do sentir
E a sensação
De te poder olhar
Lealmente sem mácula
Apagou a minha
Angústia
A certeza dolorosa
De te amar
Ditou meus versos puros
Serenamente
Sem exaltação
Desnudei a alma:
Tu estavas nela.

terça-feira, 12 de maio de 2009

---------------------------------------------1978

É desespero
O fulgor dos meus olhos
Velados pelas pálpebras pesadas
Roxas de cio
A angústia
Conduz os meus gestos
Bordando carícias
No teu corpo expectante
É medo
O nó dos meus sentidos
Escondidos
Na dobra do lençol
É raiva
A pressa
Da roupa lasciva
Tombando no chão
E calo gritando
O uivo que finjo
Mas ficou no fundo
Sem me libertar
E tu esperas
e eu cedo
E ficando
Espero e desespero.

sábado, 9 de maio de 2009

Grata compreensão-----------------1973

Com a sabedoria
Que dá a amizade
E a maturidade da experiência
Quisestes defender-me
De mim mesma.
Com o direito da afeição
Evitastes o caminho agreste
Que o orgulho me ditava,
A dignidade indicava
Mas o coração não pedia.
Agora, serena e lúcida
Olho dentro de mim
E oiço ecoar no meu peito
Esta certeza:
Não renunciarei à luta mal começada
Por julgá-la de antemão perdida.
Se me sentir fraca
pedirei à Fé energias e coragem
E prosseguirei.
Não temais.
Saberei erguer-me
Até à vossa amizade:
Sem cobardia, sem desfalecimento,
Sem lágrimas, sequer rancor,
Cônscia da vitória,Não escolherei a amargura
De um destino vazio
Porém mais fácil.
Não! Não vou desistir!
Não posso gelar-me
Numa resignação que não desejo.
Os adversários que desprezo
Não merecerão sequer um sobressalto,
Um pensamento de íntimo desassossego,
Ou um movimento de magoada revolta.
Certa do que valho,
Consciente do que posso,
Íntegra e coerente
Daquilo que sou, sei e quero,
Tendo por armas o amor e o dever,
E por escudo o direito de ser Mulher
E viver,
Arvorando a Juventude em estandarte,
Cerrarei os dentes com força,
E de olhos fitos num longe que me acena
Continuarei
Em direcção a um amanhã
Que será tal como eu o merecer,
E terei límpido, firme e venturoso
Se o souber construir,
E belo se o defender.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

--------------------------------------------------------1972

Só no riso
Como na lágrima
Há qualquer coisa
De intenso
Real e positivo
O comodismo indiferente
não-vale-apenismo
Aparente
Não é mais
Que uma capa
Rota num momento verdadeiro
Desfeita num ímpeto
Desesperado ou corajoso
Ou simplesmente chateado
Farto de engolir
Deglutir
E recalcar


A fuga da realidade
Numa grande bebedeira
"Viagem"--Suicídio
Não conduz a nada
É certo
Traz o selo da cobardia
É frustração acabada
Para quem anseia paz


Como se passará a fronteira?
E a Morte? Será um fim capaz?...

-----------------------------------------------------------1978

É desespero
O fulgor dos meus olhos
Velados pelas pálpebras pesadas
Roxas de cio
A angústia
Conduz os meus gestos
Bordando carícias
No teu corpo expectante
É medo
O nó dos meus sentidos
Escondidos
Na dobra do lençol
É raiva
A pressa
Da roupa lasciva
Tombando no chão
E calo gritando
O uivo que finjo
Mas ficou no fundo
Sem me libertar
E tu esperas
e eu cedo
E ficando
Espero e desespero.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Morte de uma Gaivota-------------------------Abril, 2009

Era uma gaivota branca.
Velozmente e de olhos fechados mergulhava no azul, ou apanhava a primeira oscilação de claridade, ondulando ao vento...
Com as minhas asas abertas à brisa de feição, planava feliz... Ou deixava-me cair a pique na movimentação das águas... Pelo peixe? Sim. Era o meu alimento... Mas do que eu gostava era das ondas... Da frescura, da sensação líquida e macia... Muitas vezes aventureira, mas leve, graciosa, emblema de liberdade.
Um dia vi, lá do cimo, um peixinho apetitoso à tona de água... Fui-me a ele. Despenhei-me de sopetão. Quando ia para amarar... ai que aflição! De repente, estava colada à água do mar. Chamei água àquela sopa nojenta, viscosa, preta e pegajosa? Crude, dizem eles... Uma armadilha mortal, mal cheirosa e repugnante. Esperneei, estrebuchei com falta de ar. Lutei para viver. Não consegui. Arranquei penas e pele. E morri.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Nos 650 anos da morte de Inês de Castro------2005

... Estavas linda Inês posta em sossego... colhendo jubilosa as flores da vida... sem outro cuidar que a sombra dos enganos..., sem outro frémito que, no silêncio marejado de espanto, o sussurro de um nome quase secreto, quase clandestino...
Caíste descuidada nas ciladas do amor, esse teu indizível amor banido, plasmado em dor... (Afinal não conheceste outra rima)...
Foi então que a lâmina severa, intolerante, abriu no teu colo de garça um canal finito a tresmalhar a vida que se escoava e antes crescia tranquila no tear dos dias...
Voltaste, Inês, e voltarás ainda..., mais uma..., outra vez... até que a vertigem da transgressão se transmute em claridade... E o par mais belo e trágico da História Lusa, volvido um só, imatéria platónica, torne em serenidade os românticos arroubos dos amantes, e as madrugadas do Mondego, ou de outro rio qualquer deixem de chorar no orvalho o Amor Maior, a Dádiva, o Delírio de Pedro e Inês...

domingo, 3 de maio de 2009

MARIA---------------------uma sobrevivente--------2006

De onde estava observava. De cima.Fora do corpo. Longe da dor. Da vergonha. Do medo.
Apartada da humilhação. Da agressão. Como se espectadora de si própria. E dele.
Há quanto tempo durava essa invasão de si mesma? Primeiro, um afago leve, quase uma festa..., um gesto mais lento..., uma carícia que sobe pela perna, mal a aflorando, e se detém na coxa magra, de criança... Logo o avançar abusivo, os protestos tapados pela mão enorme e depois calados à bofetada, as ameaças, a chantagem emocional e até a desfaçatez de silenciar o pudor impúbere, os escrúpulos morais e pueris com uma desculpa "religiosa". -Não digas nada... a ninguém. Senão... Está quieta. Deixa. É só um pecadito venial. E eu gosto tanto de ti! Tu não gostas de mim?
Via a camisola interior parda, suada, de grandes cavas... e a tatuagem. Assustadora. Uma caveira de grandes cavernas esburacadas, olhos vazados, por onde fugia e entrava um réptil horripilante. As costas hirsutas e obscenas.
Depois, recolheu-se de novo no fundo do seu eu escarnecido, quase inconsciente, e foi dando conta, gradualmente, das dores, do corpo moído, do íntimo ferido-- que mais que doía, ardia...
Tinha de reagir. Depressa. Levantar-se. Lavar-se e fazer desaparecer os vestígios, as roupas sujas de sangue, a dificuldade no andar, os olhos pisados, doloridos e fundos... O susto.
A mãe não tardava. Regressaria a casa depois do turno no hospital, nas limpezas. Viria cansada, mal humorada, impaciente. Nada receptiva às queixas da filha de sete anos, brutalizada pelo padrasto, que ela mantinha em casa com o seu suor e o seu cio, e passava os dias entre a cama, onde se espojava, a cerveja do frigorífico e o sofá, ou as idas ao café rasca, passar as horas ociosas, alimentando ideias porcas, e os vícios.
Desde que ele continuasse a cumprir no leito, a mãe não ouviria nada contra. E se não a culpasse de o provocar, já seria uma sorte! melhor amordaçar o desgosto.
Pois. Tinha de esconder. Disfarçar. Continuar a viver como se nada fosse. Foi então que inventou o refúgio. Aprendeu a distanciar-se. A dissociar a mente do corpo, agredido, violado, conspurcado... e criou a ilha, e a gruta. Um recanto do espírito onde se abrigava enquanto ele investia contra si e o seu reduto, inocente, apesar de tudo. Maria não sabia verbalizar o que sentia, não sabia definir o medo, a dor, o nojo, a raiva... Defendia-se com as armas que aprendeu a utilizar: a imaginação, algum domínio da mente. Lá, a dor não a atingia de verdade. Recebia-a em baixo, na pobre matéria inerte, objecto de desejo e perversão, de dominação e misogenia para o animal reles com quem tinha de conviver, dia após dia.
Acabada a escola escondia-se pelos cantos, ou fugia para casa da vizinha Amélia, costureira, até ouvir o urro para "a mandar lavar a loiça" ou, insidioso, a puxar pelo braço. Só no fim, quando a largava no chão, ou na enxerga, como um trapo amarfanhado, usado, abandonado, o sofrimento se tornava perceptível, mas não insuportável.
Foi remoendo a raiva, por muito tempo. Tornou-se quase um bicho esquivo e assustadiço. Até que pôde libertar-se.
Um homem bom, respeitador e respeitável, um professor amável e compreensivo, compassivo mesmo, deu-lhe a mão, estimulando-a a construir algo válido com a sua vida, porque confiante nas potencialidades que adivinhava nela. Disse-lhe um dia:- Tu não te apercebes, mas és uma mulher muito forte. Depois disso deu-se conta de que devia ser verdade. Com medo, embora, tomava decisões, algumas bem difíceis. Enfrentava adversidades. Caía, parecia sucumbir, mas sempre se levantava.
Hoje é uma empresária de sucesso, e tirando o facto de se envolver sentimentalmente com homens emocionalmente instáveis (como um padrão de fracasso) que não poderiam corresponder aos seus sentimentos especiais, venceu.
Ontem mesmo assistiu, por acaso, pela televisão, a um debate... e ouviu pela primeira vez uma palavra interessante: resiliência. e riu-se. Só o som insólito da palavra era já uma piada... Resiliência? Fora isso que lhe acontecera? Sobrevivera às provações. e tivera muita sorte. Pelo seu hábito de sair de si, distanciar-se das agressões, podia ter ficado esquisofrénica. Com dupla personalidade...Mas não. Contra todas as probabilidades prosseguira com a sua vida.
Hipersensível, quando, tantas vezes, a existência parecia encaminhá-la para o abismo, o seu sarcasmo natural vinha ao de cima, nivelava e relativizava as situações... Levava algum tempo a recuperar o equilíbrio, a redifinir os limites, mas avançava. Há muito percebera que isto não é uma tragédia, mas uma comédia parva, de mau gosto, só que havia alturas em que não lhe achava a menor graça.
Adiante. Com toda a mágoa residual que lhe condicionava a postura, maravilhava-se agora, ao dar-se conta de que esse facto não a impedira de amar.
Não ter sido amada era algo que aceitava com pena, mas naturalidade.
e dentro de si sentia que o seu melhor continuava intacto, que a criança franzina e carente de um dia não se tornara azeda ou desconfiada... A ternura brotava dela sem constrangimento... E, apesar de tudo, uma incrível credulidade infantil, como se nada a prevenisse ou preparasse levava-a, não raro, a entregas desarmadas e a momentos de ridícula fragilidade... De vulnerável dor...
Sobrevivera.
Então, porque, como sempre e tantos anos passados, a água do duche, quase a ferver, lhe caía com força no corpo,demoradamente, e ela se esfregava continuamente até a pele arder, as mucosas inflamarem, querendo arrancar de si o cheiro, o toque, a mácula, a culpa?
Resiliência..., não é assim que se chama? Então o vazio no peito, o assobio para o ar? Porque não se contenta com praliné, já que não pode ter chocolate?
--Atirou para trás a cabeça, numa gargalhada... Parecia um soluço?... Deixá-lo... Mal se notaria, se alguém o ouvisse.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Desabafo

Penso que os meus escritos não valem nada... Que sou aborrecida e desinteressante... Nunca tive uma reacção vinda do outro lado. Não é verdade. Já um poeta me contactou, mas abstendo-se de comentar, tão inúteis e mal construídos lhe devem ter parecido. Quando tinha o outro blogue, com o mesmo nome, de vez em quando escreviam comentários, que eu publicava, mas depois tive dificuldades em continuá-lo,e assim apaguei-o, depois de transferir os poemas para este. Será que ofendi alguém? Peço desculpa, pois não tive intenção... Também não estou a pôr-me a jeito... Mas gostava que me lessem, que dissessem alguma coisa... Bem ou mal. Pode ser? Obrigada. Milly

A ALFACE--------------------------------------1977

Aparentemente um bilhete tão simples e lacónico não valia aquela reacção brusca de desespero impotente... Mas era assim mesmo que se sentia: esmagado-- em pânico!
Olhou novamente a pequena nota pousada despudoradamente em cima da cama: "Fui às compras. Rita." E de novo cerrou os punhos com força.
Conhecia-a bem, no seu papel assumido de consumidora inconsciente e compulsiva, do género de «tirar la casa por la ventana»... Via-a, contente e ligeira, passando em revista os escaparates do grande armazém, e detendo-se neste balcão, ou naquele, casual e displicente, comprando à toa, sem um plano, uma necessidade, ou um desejo real. Comprando pelo simples prazer de adquirir, aqui um bâton, acolá um perfume, mais à frente um casaco, uma revista..., depois umas meias..., uns sapatos, um lenço...,um quadro..., uns brincos... et voilá-- um livro...
E se a disposição fosse melancólica, o estrago seria maior ainda, e as cifras encavalitar-se-iam na caixa registadora, sem que ela se desse conta... E, oh lembrança atroz!, se Rita tivesse entrado numa boutique-- arejando o dinheiro de plástico, ou, horror!, se se tivesse lembrado de ir até ao Centro Comercial, onde tinha crédito permanente em algumas lojas?... De lá viria ela carregada de embrulhos e caixinhas, alegre e inocente, sem fazer ideia do que debitara na já avultada conta mensal... Não! Decididamente, não! Não podia ser! Mas vendo bem...
Para que lançara ele aquela piada de mau gosto ao beberricarem café...? Não fora intencional, claro, mas demasiado conhecia ele os toques que ela acusava...
Mas talvez... Sim, bem, o Centro Comercial ficava precisamente do outro lado da cidade... E com este trânsito... Lembrou-se de reparar se o carro dela estava estacionado onde o deixara na véspera.
Não tinha completado o gesto de levantar toda a sua altura desajeitada da poltrona onde se afundara... e uma chave rodou na fechadura.
--"Mário! Já chegaste?"
Calou-se, na defensiva, esperando a aterradora aparição.
--"Olá, querido! Pensava demorar-me mais, mas a sorte foi não haver quase ninguém na frutaria da esquina. Comprei uma bela alface para o jantar. Que sorte, hein!?"


Ora vejam a salada que Rita preparou para o Mário:


"SALADA DE ALFACE"
Tomam-se as folhas de alface bem tenras e viçosas; lavam-se, muito bem lavadas, em água corrente. Junta-se-lhes um pouco de pimpinela (e eu que nem suspeito que raio de erva ou produto hortícola será isto... Só me lembro da Pimpinela Escarlate da minha infância), rodelas finas de cebola, pétalas de flores de chagas vermelhas, e tempera-se com um molho feito com azeite, vinagre e sal refinado (pouco), ligado à parte, que se deita na hora de servir.
Não havendo pimpinela, pode temperar-se o molho com vinagre de estragão em vez do vinagre comum, o que lhe dará um sabor único, muito especial e agradável.


Bom apetite! E não façam muitas compras, que o tempo não está para folias... Dediquem-se ao artesanato para espantar as sombras da melancolia... É outra terapia, e mais inofensiva para a carteira e a economia doméstica...