domingo, 31 de janeiro de 2010

de Graça Pires

Manchado de sal, o silêncio escorre-nos na cara.
Os meus olhos tropeçam em raízes antigas
e movem-se-me, na memória, indecifráveis sinais:
marcas de nascimento, lugares e pessoas,gestos
e palavras. É madrugada. Os pássaros evitam
os voos rasantes, porque as últimas sombras
da noite lhes ferem as pupilas.

de Ana Paula Inácio

amanhã vou comprar umas calças vermelhas
porque não tenho rigorosamente nada a perder:
contei, um a um, todos os degraus
sei quantas voltas dei à chave,
sublinhei as frases importantes,
aparei os cedros
fechei em código toda a escrita.


Amanhã comprarei calças vermelhas
fixarei o calendário agrícola
afiarei as facas
ensaiarei um número
abrirei um livro na mesma página
descobrirei alguma pista.

de Maria Judite de Carvalho

As portas que batem
nas casas que esperam.
Os olhos que passam
sem verem quem está.
O talvez um dia
Aos que desesperam.
O seguir em frente. O não se me dá.

O fechar os olhos
a quem nos olhou.
O não querer ouvir
quem nos quer dizer.
O não reparar
que nada ficou.
Seguir sempre em frente
E nem perceber.

REMOINHO---------Sebastião da Gama

Enrodilhei-me no Vento...
Vou e venho,
vou e venho,
e o Vento sempre a rolar-me,
e agora quero agarrar-me,
lanço a mão a procurar-me,
e é só o Vento que apanho...

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

DUETO COM MELRO----------Fernando Assis Pacheco

Este anda toda a manhã às pêras
com uma musiquinha no bico
e ri-se muito quando eu abro
a janela em guilhotina do escritório

ri-se do verso lambido
diz que o troque
por mais sólidos
apetites de aldeia
se pêras não
que posso enfim não gostar delas

vá por amoras ao Telhadouro
vá aos pinhais por camarinhas
e para que escreve o tipo à mesa
com ar tão sério diz ele
deu-lhe agora a terçã?

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

UM ADEUS PORTUGUÊS______Alexandre O'Neill

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais vigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia a dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morrer ou viver não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

sábado, 16 de janeiro de 2010

Saudades de Moçambique, dos meus verdes anos, da Rádio Mocidade de Lourenço Marques

Poderei exprimir em palavras a emoção de reencontrar, outra vez, uma parte tão significativa do meu passado? Há anos que tentava, e só agora achei o dr. Nogueira, o nosso mentor. E é muito bom recordar, embora sinta mágoa por considerar que a minha passagem pela rádio, e que até parecia algo marcante na altura, se desvaneceu, e dela não restam, aparentemente, recordações. Lembro-me do dr., a brincar na emissão de aniversário com a minha "maturidade" de temas e escrita e a colaboração contraditória em "O Teu Programa" do RCM... Lembro-me do anúncio dos meus contos... Lembro-me do Juca Pereira da Silva e do Mendes, se me não engano, que me pediram para gravar os meus desabafos em privado, e que montariam, com o meu aval, um negócio de água mineral... Rindo com as minhas emoções e as lágrimas que suscitavam nos ouvintes... Lembro-me do saudoso Eurico Correia na régie... E o choque que senti quando, anos depois, me referiram que havia partido... Lembro-me da Dília Graça, e das suas entrevistas desinibidas e incisivas... Das canções da Simone de Oliveira que ela interpretava tão bem... Da Libânia Feiteira Ferreira, com quem tanto aprendi, e de quando não tinha tido tempo de preparar a sua rubrica "Página de Poesia" e me pedia à pressa poemas meus para interpretar. Com o meu pseudónimo de Nora Villar que ainda hoje uso... e da graça que acharam quando descobriram que era euzinha! Do "Brado Africano" e de um cronista, cujo nome não recordo, e que escrevia críticas sobre nós... "Milly Barreiros, uma voz diferente"... Do Mestre Baptista, que nos visitou nesse dia e como se riram, achando a diferença em "vozinha de bebé"...
Tantas lembranças boas! Tantas emoções positivas e gratificantes! Tanta saudade!
Do fadista Joel Henriques e como me pediu que escrevesse sonetos, lamuriosos como eu sentia, para cantar...Já nessa altura a minha vida era um faduncho! Por absoluta vocação.
Tantos amigos bons que me vêm à lembrança! Sentir que teria tantas condições para estar contente, nessa altura, e não sabia! Estou feliz! Estou comovida, e já não quero perder estas ligações. Quando queremos algo muito, muito, tudo no universo se congrega para nos agraciar! Estou muuuiiito grata!

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O Futuro Perfeito---------Vitorino Nemésio

A neta explora-me os dentes,
Penteia-me como quem carda.
Terra da sua experiência,
Meu rosto diverte-a, parda
Imagem dada à inocência.

Finjo que lhe como os dedos,
Fura-me os olhos cansados,
Íntima aos meus próprios medos
Deixa-mos sossegados.

E tira,tira puxando
Coisas de mim, divertida.
Assim me vai transformando
Em tempo da sua vida.

sábado, 9 de janeiro de 2010

PREGUIÇA-----------------------

Oh...Ahn! Mais um dia! Será possível? Já estas horas?! É melhor subir as persianas... Olá manhã!... Brrr... Que frio...! Que preguiça!...
O melhor é levantar-me, tratar do Piuí e voltar p'ra caminha... Que hoje não há pressa, felizmente...
E voltou, com um tabuleiro onde fumegava uma chávena de café com leite,uma mandarina pequena e gostosa, e bolinhos macios. Scones.
Recostou-se nas almofadas, afofou o edredon, estendeu por cima uma mantinha polar, envolveu nas mãos frias a chávena quentinha, soprou os fiapos da noite, e dedicou-se ao prazer de sentir o calorzinho inundar-lhe os dedos enclavinhados na xícara.
Primeiro uma sensação de quase queimadura, depois o sangue a circular, agradável, e um sentimento de bem-estar, de conforto, pelo ninho quente e a ausência de obrigações eminentes.
Só depois de gozar um pouco essa tranquilidade feliz, sorveu um primeiro gole, um susto escaldante que a invadiu de glória.
Depois colocou os óculos e pegou no comando para assistir a um pouco de televisão. Qualquer série banal,um episódio repetido que não lhe prendeu a atenção. Deixou assim mesmo e dedicou-se a trincar um scone barrado de margarina vegetal. Bebeu mais um pouco de leite. Que bom!
Fizera os bolinhos na véspera, à tardinha, e guardara-os numa lata engraçada, relíquia sobrevivente de outras "guerras".
Depois de comer passou os olhos por uma revista de actualidades. Fez zapping, e apanhou um novo programa que, sim, a entreteve por algum tempo.
Entrincheirada confortavelmente no seu reduto, suspirou, consolada: _Afinal, às vezes, estar só tem as suas vantagens. As suas compensações.




E agora, a receita do costume:

"Scones à minha moda"

Colocam-se numa tigela grande 170g de farinha de trigo, mais 25g de fermento, ou, de maneira mais prática, uma chávena almoçadeira, grande, de farinha para bolos, já com fermento. Uma chávena (de café) de leite, uma colher (de sopa) de açúcar, uma colher de margarina para culinária derretida e um ovo inteiro. Bate-se tudo muito bem.
Com esta massa fazem-se montinhos que se colocam no tabuleiro untado de margarina, e que vão ao forno a cozer.
Depois, podem aquecer-se um pouco no micro-ondas, para consumir nos dias seguintes.

São muito bons.
Bom Apetite!

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

arte---------------Carlos Azevedo

as palavras já não contam
na floresta de pedra musgada


só o fogo
só o silêncio


e o movimento das minhas mãos
no dorso do teu cavalo inteiro


crina casco espuma sangue


meu nevoeiro

Canto Adolescente----------Do Poema-----------Casimiro de Brito

O problema não é
meter o mundo no poema; alimentá-lo
de luz, planetas, vegetação. Nem
tão-pouco
enriquecê-lo, ornamentá-lo
com palavras delicadas, abertas
ao amor e à morte, ao sol, ao vício,
aos corpos nus dos amantes-

o problema é torná-lo habitável, indispensável
a quem seja mais pobre, a quem esteja
mais só
do que as palavras
acompanhadas
no poema.