quinta-feira, 29 de abril de 2010

MARCHA FÚNEBRE-------Pedro Homem de Mello

Vinham dois, vinham quarenta
Vinham já cem mil talvez
E uma poeira sangrenta
Cobre o solo português.
De Este a Oeste, Norte a Sul,
Tais como as ondas do mar
Olhar negro, ontem azul
Vinham deitar-se a afogar
Vinham mudos e sombrios
Com a noite na garganta
Vinham cegos como os rios
Como a sede quando espanta
Vinham sem saber onde iam
Mergulhando o corpo todo
Nas próprias veias que abriam
Como quem se afunda em lodo
Eram eles a fronteira
Da Pátria sem pensamento
Como escravos sem bandeira
Tendo por bandeira o vento
Cidade, cidade minha
Quem o havia de dizer?
Atrás de um, mais outro vinha...
E vinha para morrer!

domingo, 25 de abril de 2010

O ABRIL DA LIBERDADE-------------Carlos Azevedo------------Lagos, 1974

Agora que te tenho mal sei andar
tão preso nasci de movimentos impostos
Sei que sou português e nada
que sobrevivi à tristeza da frustração desesperada
que me perdi na escuridão dos tempos
que ninguém deu por mim nem por nada
tal me foi como a tantos dada por condição
sobreviver
Continuo português valha a verdade
e agora
ébrio de tanta luz nem vejo a liberdade
libertar-me desta inocência inicial
Sinto-me feliz sim mas
uma felicidade de criança
inocente e pura sem desconfiança
só que não quero nesta meninice
nem pai nem mãe
nem nome nem baptismo nem festa de nascimento
nem brinquedos também
Quero trabalhar sim
a liberdade que me foi dada agora só
quero viver a liberdade
de ver a liberdade imposta
quero ter na igualdade
a tua mão como resposta

E se entre tantas coisas essa sim acontecer
então valeu a pena sim sobreviver
avante pois companheiro avante
que a luta vai ser constante

quinta-feira, 22 de abril de 2010

VIAGEM------------Conceição Riachos

Partir
no grito das gaivotas
na água limpa
do desconhecido


Deixar o rotineiro


Partir
para um mundo
coeso e inteiro
onde o azul
é a cor
do tempo
sem dor

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Felis scribens-----------------Delfim Leão

Dormes à sombra do texto
aconchegado na pontuação
arranhas cada um dos versos
para afiar a expressão
saltas de rima em rima
espreguiças-te no metro
e para matar o enfado
dás caça à inspiração


Desaparece,
Não sejas chato.
Sai-me deste poema.
Vai-te embora, ó gato!

quarta-feira, 14 de abril de 2010

DIES IRAE-----------Miguel Torga

Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

Oh! maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas.

terça-feira, 13 de abril de 2010

POEMA para Carlos Falk-----------Carlos Anísio Melhor

... mas a tristeza é minha_
a outros oferto o canto matinal, o vôo,
o verso.
Enquanto reservo para mim a hora fria,
a nuvem distante.
A tarde, eu sei, é ausência e no seu fosco,
brilha o que tenho de mais puro
e esquivo.
Que outros devassem o riso, a alegria;
que outros comemorem suas festas:
eu retomo com humilde paciência,
a tarefa de olhar o mundo,
dissimulando os olhos.
E nem a memória permita o acervo inútil,
das palavras ouvidas, dos actos vistos;
mas escoe tudo isso para uma região,
de onde os pássaros não voltam.
A minha alegria
é não possuir nada.

A AMIZADE-----------------Francisco Gomes de Amorim

Como as plantas melindrosas
A amizade quer cultura:
Se não, faz-se como as rosas,
Quando perdem a frescura.

Nasce e cresce lentamente;
Devagar, deita raízes;
Mas, depois de bem frondente,
Como abriga os infelizes!...

Quanto mais velha mais bela,
Se foi sempre sem mudança;
E livrar que, à sombra dela,
Possa haver desconfiança.

A suspeita_ mal terrível!
Quando a vê, lhe abre o jazigo.
E nada mais detestável
Que o sorrir de um falso amigo.

Corações bem cristalinos
É onde ela robustece,
Onde dá frutos divinos,
Onde a flor jamais perece.

E criada em peito amante,
Mais que amor deve ser cara,
Pois se é raro o amor constante
A amizade ainda é mais rara.

LIBERDADE E SOCIEDADE

Confesso que me tenho sentido confusa, angustiada e até às vezes irritada com as notícias de que não posso escapar e me deixam de rastos.
Bullying...! Desrespeito. Violência. Consequências da liberdade excessiva? Pode a liberdade ser excessiva? Ou, em algum momento do processo, algo importante se perdeu na escala de valores e foi confundida com libertinagem?
Libertinagem, sim. Pois liberdade será outra coisa: a percepção do outro, do "EU" de cada um, que não pode sobrepor-se à pessoa do outro. O respeito pelos direitos de todos, e também dos nossos, claro. Todos temos fragilidades de carácter, entre elas uma personalidade narcísica. Patente ou camuflada. Escondida, às vezes, de nós mesmos. Mas convém, para a própria sobrevivência, que aprendamos a abdicar desse egoísmo em prol do bem colectivo. O "nós" terá sempre mais força que o "eu", mais direitos, e consequentemente mais eficácia, e mais ética.
Reparo que estou a perder-me em filosofices estéreis e a desviar-me do tema. Voltando ao assunto:Que profunda crise envenena todos os nossos actos e transforma o famoso país de " brandos costumes" num pasto de intrigas, questíunculas, guerras intestinas, onde parece perigoso e pouco apetecível viver?
Na minha fraca opinião a crise é, sem dúvida, de valores. As noções de Bem e de Mal misturaram-se, diluíram-se, numa vaga promiscuidade permissiva.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

MÁSCARA

Escuto um sussurro no vento
no riso escondo igual lamento
sem o deixar aflorar
E mostro nos olhos a alegria do riso
na boca arredonda-se um sorriso
num traço estudado a disfarçar
Eu não sabia
que se via
nem sequer que se notava
que alguém adivinhava
o grito que me viaja
por dentro da mansidão
o choro que engulo teimosa
os passos que me forço a andar
mesmo que os pés se recusem
e o medo me devolva raivosa
ao meu íntimo a escuridão
Não quero que o sofrimento
me enfraqueça a vontade
o espelho me devolva a idade
de desistir e parar
Tenho a força da coragem
que me impele para a frente
e na alma o sentimento
de não me deixar quebrar
Se é bravata ou verdade
só a marca dói na mente
e atrapalha a viagem
e 'inda há tanto para andar

quinta-feira, 8 de abril de 2010

O HINO QUOTIDIANO----------Gabriela Mistral

Neste novo dia
que me concedes, ó Senhor!
dá-me uma parte de alegria
e faz que possa ser melhor.

Dá-me esse dom que é a saúde,
a fé, o ardor, a intrepidez,
trazidos pela juventude;
e a colheita da verdade,
a reflexão, a sensatez,
consequências da idade.

Feliz serei se ao fim do dia
um ódio a menos conseguir;
se alguma luz meus passos guia
e se algum erro eu extinguir.

E se por aspereza minha
ninguém as lágrimas verteu,
ou se alguém teve uma alegria
que o meu carinho lhe ofereceu.

Que cada tombo na ladeira
me vá fazendo conhecer
cada armadilha traiçoeira
que o meu olhar não soube ver.

E que eu avance mais segura
sem protestar, sem blasfemar.
Que a ilusão doure a aventura
e essa ilusão ma faça amar.

Que eu dê a soma de bondade,
todos os actos e o amor
que a cada ser se manda dar:
soma de essências para a flor
e brancas nuvens para o mar.

E que o meu século enfatuado
numa grandeza material
não me deslumbre nem me faça
esquecer que sou barro mortal.

Que eu ame os seres deste dia;
que a todo o transe encontre a luz.
Que ame o prazer e a agonia:
que ame o sinal da minha cruz!

segunda-feira, 5 de abril de 2010

OS MEUS HERÓIS-----------António Arnaut

Prezo os símbolos, o rasto e os sinais
da minha nostalgia portuguesa. Mas
os meus heróis verdadeiros não vêm na história,
não têm monumentos nas praças domingueiras
nem dias feriados a lembrar-lhes o nome,
são heróis dos dias úteis da semana
levantam-se antes do sol e recolhem apenas
quando a noite se fecha nos seus olhos,
lavram a terra, o mar, e são jograis
colhendo a virgindade púdica da vida,
sobem aos andaimes, descem às minas
e comem entre dois apitos convulsivos
um caldo de lágrimas antigas,
são os construtores do meu país à espera
mouros no trabalho e cristãos na esperança
famintos do futuro, como se a madrugada
fosse a seara imensa apetecida
onde o sol desponta nas espigas
sobre o casto silêncio da montanha.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

AMIZADE

Ninguém vive, ou sobrevive sozinho. Em perfeita saúde física, mental e espiritual. Todos tendemos para a relação complementar e cúmplice com outros seres humanos.
Geralmente a amizade constrói-se devagarinho, cimentada em tendências semelhantes, gostos parecidos, conceitos idênticos, ideias iguais. Ou assenta em diferenças, mas sempre baseada numa aceitação, num respeito mútuo, numa estima que resiste a qualquer dissidência. E há amigos que mal se vêem se reconhecem, como se tivessem um passado imenso de vivências comuns, de afecto partilhado. E às vezes, largos anos de convívio se desfazem, numa triste constatação de que tudo foi perda de tempo, e não existia verdadeira amizade.
Ser amigo é assim: uma estima, uma afeição terna, capaz de partilha, de consolo, de entendimento, de crítica construtiva, de sinceridade.
No entanto os amigos são pessoas, como nós. E não existe ninguém perfeito. Não podemos criar expectativas a seu respeito, não devemos, aliás, esperar nada deles, sob pena de cairmos de desilusão em desilusão. Devemos dar-lhes compreensão, aceitação, estima, perdão, sem cobranças.
Mas um amigo dá provas de amizade: confia e é confiável; não julga mal nem precipitadamente. Se algo no comportamento do outro lhe desagradou ou deixou dúvidas, deve questioná-lo, para que não haja mal-entendidos a crescer entre eles. Nunca diz mal do amigo para outros, estranhos a esta amizade.
Ser amigo é cultivar a entre-ajuda e o perdão. Não se julgar superior ao outro, nem inferiorizar-se. Não alimentar a inveja, arrancá-la se a percebe crescendo insidiosa, como uma erva daninha. Evitar a convivência excessiva, para que o respeito e o afecto sejam preservados.
As faltas dos amigos escrevem-se na areia, na orla do mar. Claro que é difícil. Muito difícil. Sobretudo se a amizade é constantemente ameaçada por pequenas traições quotidianas: quando o outro ouve criticar o amigo e, em vez de o defender, ajuda a afundá-lo;
quando revela levianamente confidências que só a amizade permitiu. Quando censura o amigo nas suas costas, sem o deixar defender-se... Péssimo é ter consciência de que os seus actos ou omissões corromperam a amizade. Pior que o erro do amigo.
A amizade só é alicerçada em sentimentos fortes, persiste se é séria, mas não sem abalo, acreditem. No fundo, no fundo, é tudo uma questão de respeito, de honestidade, e, às vezes, reconhecimento.
É muito doloroso perder dentro de si a amizade por alguém.
As pessoas, geralmente, esquecem-se que a amizade é uma flor frágil, que requer cuidados: lealdade, rituais de afeição, gratidão, confiança e partilha. Sem ser necessário um abafar o outro. Às vezes mal se vêem, pouco se comunicam, podem estar desaparecidos anos a fio, mas se for preciso, sabem que podem contar uns com os outros. Ou no caso de não se verem por muito tempo, o reencontro é sempre uma festa!
Se este sentimento for maltratado ou negligenciado, a amizade murcha, pode quebrar até. Reatada, persiste, mas nunca mais voltará a ser igual.
Sou muito presa aos meus afectos, às amizades. De há seis anos a esta parte tenho vindo a reencontrar, um a um, os amigos da minha juventude: dos 16, 17, 18, 19 anos. E parece que o tempo não passou. Tem sido uma grande alegria saber e sentir que, em dado momento, marquei e a minha vida foi marcada por seres humanos de eleição. Sobretudo porque éramos jovens, cheios de simplicidade, bem intencionados. Deus me ajude a conservá-los e a merecer conquistar o afecto de outros tão puros como nós éramos.