domingo, 28 de dezembro de 2008

CADA UM TEM O SEU NATAL---Henrique Segurado

Sujeito a acidente ou a enfarte
Não serei dos funâmbulos reais?
De Menino Jesus fizeram Marte
Num presépio de guerras mundiais.


Abrir as veias, sim! E não veneno
Que nunca deixa espaço a um enredo
E o correr do sangue é tão sereno.
É brisa que nem move o arvoredo...


Nascido entre guerras mundiais
Houve fogos cruzados no meu parto.
Eram soldados, ah! e não jograis
Os pastores que cantavam no meu quarto!

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

NOEL -------THÉOPHILE GAUTIER

Le ciel est noir, la terre est blanche;
Cloches, carillonnez gaîment!
Jésus est né.La vierge penche
Sur lui son visage charmant.

Pas de courtines festonnées
Pour préserver l'enfant du froid,
Rien que des toiles d'araignées
Qui pendent des poutres du toit.

Il tremble sur la paille fraîche,
Ce cher petit enfant Jésus,
Et pour l'échauffer dans sa crèche
L'âne et le boeuf soufflent dessus.

La neige au chaume coud ses franges,
Mais sur le toit s'ouvre le ciel.
Et, tout en blanc, le choeur des anges
Chante aux bergers: "Noel! Noell!"

domingo, 14 de dezembro de 2008

SÚPLICA------------1971

Há quanto tempo, João,
Nos afastámos como dois estranhos...
Olha, dá-me a tua mão
E leva-me contigo
A reboque dos teus sonhos...


Tu não sabes, João,
Mas a solidão, esta horrível solidão,
Há-de acabar comigo
Não, não me deixes só
Que me sinto perdida, abandonada,
Não me deixes só
Que me sinto desprezada
-Eu sei que o farei
(Não te rias) quando tiver coragem
Empreenderei
Uma longa viagem
- Porque então não faremos outra os dois?
Uma viagem diferente
Longe do instante presente
João, porque tudo mudou??
Dá-me a tua mão João
E leva-me para longe
Para fora do mundo
A descobrir a vida...!
Olha, tu já viste
Como ela agora
É vibrante e colorida?
Despe esse senso comum...
Põe uma camisa vermelha
E uma calça larga velha
E corre, corre
Sem preconceito algum
de cabelos ao vento
Leve leve de alpergatas
Ou descalço pelo chão,
Eu, de bermudas azuis
Blusa branca
Desapertada
Para que o ar me tonifique
O peito e me encha o coração
Corre, João
Ri, João
Vê que eu
Também sei rir
E desfaleço cansada
Mas continuo a sorrir
João, não me deixes só, João
Corramos assim indefinidamente
Até apagarmos em nós
O ressentimento amargo da obrigação
Que desgasta
A alegria, a vida, o amor
A angústia do horário que te afasta
(João, pára e colhe uma flor...)
Das contas a pagar
Dos sapatos a engraxar
Dos anúncios a tentar
Da inflação a aumentar
Dos saldos para pecar
Das meias para coser
Dos botões para pregar
Notícias de assustar
Das horas para comer
E calendário para amar
João
Dá-me um abraço apertado
Mas do fundo do coração
E continua a correr
Até estares esquecido
Mas leva-me,
Leva-me contigo!

INQUIETAÇÃO------------1966

No silêncio denso
Do espaço sem limites
Nem dimensões
Ecoa uma dor pungente
que se estende e alonga
Ansiando fundir-se
Numa mágoa maior...

Contém em si este momento
De íntima e rara comunhão
O instante preciso de agora
Não o que antes se foi
Nem o que virá depois

Circulam na aragem morta
Débeis gemidos-murmúrios
Pressentidos da turba curvada
Em postura cobarde-
Que se projectam
Imensos e vários
Na mansidão calada...

Fremem apelos mudos
Na saudade do passado...

(A solidão não sou eu ainda...
...Quero chorar mais...!)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

CANÇÃO DO AMOR ESTÉRIL___________1965

Traçou-me Deus
Um destino
A que não posso fugir...
Seguir-te sempre
Ignorada
Na lama a fundir-se a dor.

Amar-te? Para quê?
Se não posso aspirar
A seiva dos teus beijos...
Afagar teu rosto
Com minhas mãos trementes...
Rolar a alma
Na sombra dos teus passos...!

Amiga? Não...!!
Se banho em pranto
Os olhos roxos...
Se morro em cada instante
Na angústia louca
De tanto te querer...!

A doçura do teu olhar sereno
Desperta em mim
A recordação amarga
Do beijo casto que pousaste um dia
Na minha mão disforme.

E eu, que já o não sou,
Blasfemo torturada
Na amargura
-Maldita a hora, ó Deus,
Maldita a hora
Em que insuflaste em mim
O hálito da vida!...

E o sonho lindo
Que embalei um dia
Dilui-se cruamente
Na incerteza
Do meu amor estéril
Na mágoa ansiosa
De em vão te querer...

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

E A LUZ RASGOU AS TREVAS -1966

Trôpega e tremendo de terror
Por atalhos escondidos
Me arrastei,
Por searas já ceifadas eu andei,
Escondendo o meu rancor
Nas sombras cúmplices da escuridão...

No ermo estéril
Em que me encontrei
Quis com os meus uivos
Acordar os mundos
Que pela calada dormiam...

Com a garganta rouca de gritar,
O coração já cansado
De pulsar,
Ofegante me calei,
Atónita por ninguém ouvir meus ais...

Rilhei os dentes com desespero,
Ergui os punhos numa ameaça vã,
E cedendo à raiva surda
Que me oprimia o peito,
Amaldiçoei a hora aziaga
Em que pela primeira vez a luz vi...

Riscando o espaço com o seu facho
Luminoso, um dedo fatídico de fogo
Apontava-me uma senda e cegava-me
Com o seu esplendor...
Tremendo quis protestar, reagir
Contra aquela servidão à qual inconsciente
Me entregava.

Com os olhos incendiados
Procurando furtar-se à luz divina
Que os fascinava
Submissa trilhei os caminhos
Que Alguém com Amor para mim tinha traçado.

Galgando penhascos, transpondo abismos,
Mergulhando os pés chagados
Em charcos de lama ardente, abeirei-me
Enfim da Vossa morada Senhor
E ante Vossos pés me humilhei...

Ousei penetrar no Vosso Templo sagrado
Arrastando comigo a lama
Do pecado
E a cegueira do orgulho
A vendar-me os olhos...

Acudindo ao som calado
Que se demorava seco na garganta
O Vosso olhar de Pai pousou em mim
O Vosso infinito Amor
Aos entes sofredores quebrou o gelo
Feroz da minha angústia...

E o estigma indelével
Que há muito me assinalava
Diluíu-se lentamente no fluxo de Amor
E Promessa
Que a Vossa Presença Divina
Difundia...

A prece sem palavras
Que não brotou dos meus lábios
Mas se evolava
Sincera do meu coração
Chegou até Vós, Senhor,
E encontrou eco na Vossa infinita bondade...

A luz radiosa
Que Vos envolvia e me deslumbrava
Penetrou nas trevas em que o meu ser
Se debatia e ficou a luzir
No meu ego marcando uma senda
Na minha escuridão...

Essa luz
A maior e mais preciosa dádiva
Testemunho inegável da Vossa Divindade
Era a Esperança vivificadora
Que abriu novos horizontes
A um pobre coração cansado de negar...

Por esse imenso Amor
Puro e Sublime
Obrigada Senhor!

INSÓNIA

Arrasto a existência
Sem um fito
P'las minhas longas noites
Sem alvorada

Noites de fantasmas
De ilusões
De espectros de delírio
Pesadelos de remorso
Que me perseguem torturam
Sem que possa descansar

Na ânsia de quebrar
Os grilhões pesados
De uma vida vazia
Que eu não quero dourar


Ergo os braços
Para o infinito
E recolho nas mãos fechadas
Poalha dourada de estrelas
Olvido e lassidão

Procurando um norte
A alma vagueia nas sombras
Sombras esquecidas
Sem alvorada Negras
A saudade não tem fim.

From VACHEL LINDSAY

Years on years I but half-remember...
Man is a torch, then ashes soon,
May and June, then dead December,
Dead December, then again June.
Who shall end my dream's confusion?
Life is a loom,weaving illusion...


One thing, I remember:
"Spring came on forever,
Spring came on forever",
Said the chinese nightingale.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Shophia de Mello Breyner Andresen

There is a sea
A far and distant sea
Beyond the farthest line,
Where all my ships that went astray,
Where all my dreams of yesterday
Are mine.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

---1992

Se eu puder
Ser para ti
Uma vivência
De dor
Vive-a em mim
Intensamente.
Magoa-me fere-me
Vai até ao fundo
Sem medo duramente
Mas vive-a
Explora-a
Enriquece-te
Goza sadicamente
A minha angústia
Mas faz-me participar dela
Que o sofrimento
É vida
A indiferença é morte
E assim não quero viver.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

ETERNIDADE-------------------1968

No abandono doce e trágico
Deste momento de amor
Desvenda o enigma dos meus olhos tristes...
Descobre neles o adeus submisso
Que nasceu no teu sorriso
E a ternura arrebatou.


Mas ao morrer nos teus braços
Exausta pelos teus beijos
Não te despeças de mim...
Sem desespero, sem lágrimas,
Abre a cova num canteiro
E enterra-me no jardim.
Deixa os vermes e as plantas
Beber vida nos meus olhos
Que não sabem ver-te mais...
Não cruzes as minhas mãos:
Que eu as sinta muito leves
Para afagar o teu rosto
Depois que o meu se apagar...
Não; não procures a essência que não sou!
Beija a rosa vermelha
Que hauriu em minha boca murcha
O alento sensível do orvalho
E um grande amor por ti.


Sentindo os ossos palpitar
Numa ilusão de vida
Enlaçados nas raízes
Julgarei que és tu a conchegar
Num abraço mágico e alado
O meu pobre coração gelado
Em tuas mãos viris.

Pergunta---------------1968

Quando o céu azul
Se tarja de neblinas
De saudade
E a aljava
Do destino
Pontilha de gelo
O infinito
Entre os gritos das estrelas
Estremece de anelo
E angústia
O meu corpo
Convulsivo em teus abraços
Então um clamor
De ansiedade
Flui como um rio de fogo
dentro de nós
Há dois astros
Que se fundem
Num apelo


Mas onde a comunhão?

De António Ramos Rosa

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

CLOSET------------------06-10-06

Há já demasiado tempo que não abro as portas do armário... Pressinto incomodada o que guardam... Quando passo, de relance, olhando para o outro lado, oiço o chocalhar dos ossos... Os esqueletos estão lá... os mesmos de sempre... Os monstros , no fundo, alapados no oco do escuro, a coberto do silêncio, engordam , sonsos, nutrindo-se dos meus medos, das minhas inseguranças, da mágoa insidiosa que encafuei lá dentro, para não a ver...
Quando predar a alegria, escancararei o silêncio. Talvez as dobradiças não sustenham o meu ímpeto, e os morcegos voem para longe... Talvez os sustos se encolham sem remédio, diluindo-se nas trevas ora invadidas pela luz a jorros. E a verdade os espantará.

sábado, 22 de novembro de 2008

ANÁLISE ÍNTIMA---1971

Ah que absurda
Que monótona
Que errada
É a vida


Uma lágrima a escorrer
Por raiva do que não sou
Do que fui
Do que vivo contrafeita
E do que eu queria ser
Um palavrão sussurrado
Por vergonha de o bradar
Um soluço desmanchado
Um pontapé pelo ar
Um breve passo de dança
Que estético não chega a ser
Um movimento apressado
Uma volta
Um floreado
Um passo desesperado
Que imenso significado
Eu queria preencher
E a hipocrisia do sonho
E o tédio de viver
Uma vida direitinha
Normalíssima
Mesquinha
Onde esta imensa tortura
Decerto não vai caber


Eu devia andar contente
Feliz
Como toda a gente
Que conseguiu
O que quis


Mas eu não sei o que sou
De onde venho, onde estou
Sequer para onde vou
Sei de um saber que adivinho
Sei que o melhor de mim
E o pior que sou
Rompe os diques da decência
Da triste realidade
E vibro autêntica
Presente e viva longe da normalidade
E sou um pouco de tudo
Sou a Morte e sou a Vida
Sou Poeta e Vagabundo
A dor e a serenidade
Sou soldado num assalto
Sou activista da paz
Sou boémia debochada
Sou o inimigo escondido
À coca dentro de mim
Sou perdida e mal achada
Sou o garoto com fome
Sou o rico que desprezo
Mas cujo bem estar invejo
E cujo tédio me dá dó
Sou o homem que tropeça
À procura da Verdade
E sou aquele que A tem
Sou o ateu que não crê
Sou revoltada por ser
(Uma atitude talvez
Ou quem sabe convicção)
Sou cobarde ressentida
Sou maníaca perseguida
Ridícula visionária
Com anseios de grandeza
E artifícios de ilusão
E porquê esta angústia
que tão bem conheço
Este perfurar o cérebro
Maltratar vãmente o coração
Este filtrar as imagens
Depurando-as
Este sofrer sem razão
esta indolência desdenhosa
Esta indiferença passiva
Volvida entusiasmo por tantos ideais
Que só existem na imaginação
Este desespero animal
Esta sensibilidade doentia irracional
Esta humildade tão altiva e distante
Esta ansiedade que me possui inteira
Esta necessidade aguda
De me conhecer
Para ser
Este desejo obscuro
De ver nos fachos
Que doei à vida
Ou que a vida acendeu
P'ra mim
Uma flecha de infinito
A tocar o sonho
Que me amargurou
Uma luz brilhante
Mostrando o caminho
Que não realizei
Por medo
Por medo
Por não ser capaz


E se um dia o conseguir
E nos olhos dos meus filhos
Vir a chama para que vivi
Valerá a pena?
Não verei também desgosto
Quiçás insatisfação
Por na herança
Que lhes quis deixar
Eu ter misturado
A angústia o sofrimento a agonia
A incompreensão?
Mas não...
Eu sei que a Vida
Lhes será tão mais bela
Quanto mais vencida
E o ideal perseguido
Ser-lhes-á mais fascinante
Quanto mais além!

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

FRACASSO

Quisera
Ser tocha inflamada
E consumir-me toda
Em holocausto de amor
Brilhante e viva
Luz e calor
Até às cinzas
E ser ainda fértil depois
E no entanto
Ardo em combustão lenta
E inútil
Envolta até ao cerne
Em rolos de fumo
Espesso de egoísmo e revolta
Amando e sofrendo
Não salto para a fogueira
Num impulso autêntico
As faúlhas em festa
Todo o melhor de mim
É destruído em vão
E não presto nem sirvo
Para nada.

UM NATAL DIFERENTE

No acampamento a noite caíra de repente. Aqui e além fogaréus incipientes iam iluminando as trevas entre os carroções, e lanternas luziam agora em algumas tendas.
Sombras começaram a mover-se e em breve foi acesa uma grande fogueira na clareira central. Juntou-se em volta dela uma pequena multidão.
Os trajes garridos tinham reflexos alegres e as palmas cadenciadas prenunciavam a festa.
Os risos e murmúrios abafados foram-se extinguindo. As violas sincopadas encheram de música a noite e as castanholas começaram a soar. as vozes elevaram-se nas canções mais harmoniosas e alegres.
Então, um venerável ancião, o chefe do clã, o patriarca, destacou-se do povo. Fez-se silêncio.
Falou, comovido, com voz profunda e solene, contando a história antiga e sempre nova do Menino filho dilecto de Deus, Mestre de todos os homens, que viera ao mundo para a todos salvar.
As labaredas subiam mais alto e os rostos iluminavam-se de fervor.
Entoaram-se preces. Uma corrente de fraternidade e paz perpassava pela assembleia.
Ouviram-se de novo as violas, e os cânticos_quase em surdina primeiro e depois num crescendo vibrante, eufórico. As palmas marcaram de novo um ritmo de alegria.
Um par veio dançando em volteios rápidos, e parecia que as chamas ganhavam vida, bailavam, saltavam para a fogueira e volteavam com eles.
Os bailarinos dançavam, dançavam, os seus corpos esbeltos requebravam-se, contorciam-se, sensuais e elásticos, plenos de beleza e arte.
Era a sua maneira de louvar o Senhor, de mostrar o seu contentamento por estarem vivos e entre os seus, por guardarem a Fé e a Esperança que Jesus trouxera ao seu mundo simples.
Outros pares bailavam, em ritmo quase alucinante.
Todos os ciganos participavam desta comunhão quase mística de júbilo e sonho.
As crianças mostravam os rostinhos felizes luzindo, vermelhos do fogo. Algumas erguiam também os bracinhos magros e batiam o pé ao ritmo da música.
Todos lá estavam!
Todos?!... Não.
Rufina, a velha zíngara que tantos invernos vivera, tantas histórias conhecia, estava um pouco afastada, alimentando outra fogueira com gravetos e achas, vigiando-a, cuidando da vitela a assar, dos fritos aromáticos.
Ela garantia sempre outro prazer, não menor, para que a festa fosse completa: a boa cozinha.
Logo chamou, batendo com uma colher de pau numa tampa velha, e dois latagões jovens se aproximaram para carregar o assado.
Outras mulheres mais velhas, porém menos que ela, as suas amigas e ajudantes, já lá estavam, e Rufina juntou-se então ao grupo.
Cantou alegre, batendo as mãos calosas, sorrindo feliz, enrugando mais o rosto envelhecido.
Quis depois contar, quando as conversas se generalizaram, que o churrasco perigara, que a lenha estava húmida e não queria pegar... que lhe doeram as costas, mas tudo passara... e não a ouviram. Nunca a ouviam.
Rufina encolheu os ombros..., ninguém reparou. Não.Desta vez não se importava. O sorriso corajoso alargou-lhe mais a face magra, e a leve sombra do olhar foi afastada por um brilho contente.
Era Natal. Era a festa. Era natural que as suas informações quotidianas fossem ignoradas. O som dos risos e dos cantares devia soar mais alto.
E riu. E cantou. E deixou que o sortilégio da noite, da celebração, do gozo de ver todos satisfeitos,
comendo prazerosos as iguarias que preparara, tomasse conta de si. Um brilho difernte assomava no fundo das suas pupilas cansadas, que o sono, hoje, não embaciava...
Quando todos se deitaram, altas horas, e na clareira só crepitavam levemente as brasas esborralhadas das fogueiras, Rufina entregou ao descanso o seu corpo moído, e na tenda partilhada, só os sonhos suaves e tranquilos de paz e harmonia povoaram a sua mente adormecida.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

O galo
cantou de madrugada
Violentado
pela luz crua
da tarde
os espinhos da micaia
desvendaram
os orifícios da coragem
no seu cadáver-
-denúncia
absurdo e trespassado

MAGIA

À noite ouvi o tambor
Ritmando na Mafalala
O ritual envolvente
Que narcotizava o bairro
E acordava os espíritos


Xikwembu
Punha nos búzios
O segredo dos ventos
As algemas pesavam
Surdamente
Na memória rangente
Iniciada


Furor e prantos
Faíscaram fundo
Na determinação líquida
Do olhar
O futuro
Rolando caprichoso
Nas mãos destras
Do feiticeiro.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

MORRINHA

Ai flores lilases
Dos jacarandás
Vindos de longe
Duma brecha do tempo!...
Teimais em juncar
De beleza
a geometria exacta
Das ruas dos meus sonhos
Quando a alma
Se me dobra
Em sua Dor

Meu menino negro lindo
Balofo de mandioca
E molho de amendoim
(raras vezes inhama)
Que eu pegava ao colo
Numa esquina do Largo Albasini
Entre maçarocas quentes
Doces cheirosas
De bagos tenros
Mordidos no carolo
Depois da boca deliciada
Do beijo
Nas tuas faces redondas
E o teu olhar de veludo
Sorridente

Queria lá saber
Do ranho seco que te manchava o lábio
Consolavas-me
Consolava-te
__O teu peso macio
No meu braço
(que me importava a camesola suja
se sentia o calorzinho tenro
do teu corpo
na minha bata)

A quinhenta mudando
Da minha p'rá tua mãozinha sapuda
O teu riso prazenteiro
E depois o chupa guloso
A lambuzar-te mais
Ou a machuinga embaloada
Sob os olhos complacentes
Da mamana
Agradada

Ai mufaninha da Mafalala!
Meu amiguinho desconhecido
De quem nunca soube o nome...!
As saudades enchem-me
De gozosa mágoa...





inhama-carne
machuinga-pastilha elástica (chewing-gum)
mamana-mulher(mãe)
mufaninha-menino
Mafalala-bairro nativo da Avenida de Angola (que vai dar ao Aeroporto) de L.M. (Maputo)

sábado, 15 de novembro de 2008

MEMÓRIAS DE ÁFRICA

Migrei para Moçambique aos 14 anos, com os meus pais, irmão e uma avó, que então me parecia muito velha.
Queria muito ir; o espírito inquieto e espartilhado numa educação excessivamente cuidadosa, eufemismo de sexista e severa, ansiava por horizontes mais largos, por uma vivência mais solta, por convívios mais enriquecedores. Deus sabe as espectativas que levava!...Talvez de viver a vida como uma aventura... (Não se esqueçam de que eu tinha então 14 anos!)
No entanto, a saudade dos lugares, das amiguinhas do liceu, da família que ficava, de mim, e o medo do desconhecido, sulcavam-me as faces de lágrimas de desgosto e esperança ao mesmo tempo. Assim foi que, na longa viagem de navio (18 dias no paquete "Infante D. Henrique"---fantástica embarcação) essas lágrimas secaram, e os pequenos prazeres inocentes e discretos da travessia, furtados com sensatez à vigilância paterna,abriram no meu rostinho de menina um sorrisito envergonhado.
Lá, foi um deslumbramento logo à chegada.
A modernidade dos prédios altos encimados por terraços, as largas avenidas de traçado geométrico e exacto, de alcatrão negro e brilhante após as súbitas e breves chuvadas, ladeados por longos passeios de terra batida bordados de acácias rubras, de jacarandás frondosos, dando a tudo uma atmosfera de sonho e encantamento...
A multidão nas ruas, gárrula e garrida,os negros apressados, quantas vezes de rádio pendurado no braço, música alta, vibrante, sensual e sincopada, tricotando gorros ou longos cachecóis, tantas vezes enquanto galgavam em passos lestos as avenidas , rumo ao trabalho que os esperava na estiva, no porto, ou num turno pesado em qualquer padaria ou construção manhã cedo, sem se enganarem, sem deixarem cair uma malha, sem trocarem as voltas ao fio colorido...
Os batuques, que desde logo me fizeram vibrar, com as suas batidas hipnóticas e intensas que me inundavam a mente, entravam pelos pés, subiam pelo sangue e me envolviam inteira, num chamamento irresistível que me levava a desacatar inconscientemente a proibição familiar, a furar a barreira de basbaques e a sacudir o corpo ao compasso das timbilas, marimbas ou tambores. Ainda hoje essas músicas me tocam irremediavelmente...
As vendedeiras nas ruas... o cheiro das maçarocas de milho a ser assadas ali mesmo, no passeio, o sabor doce e acre das gingivas cor de ferrugem... O espreitar furtivo da Mafalala que fervilhava atrás do meu quintal... Do segundo andar onde vivia observava interessada os afazeres quotidianos que me eram então estranhos, porque recém chegada da Metrópole: As mulheres que se sentavam por ali, no terreiro, amamentando bebés que traziam às costas, ou peneiravam o milho acabado de moer no pilão, ou cozinhavam em pequenas fogueiras,as crianças que brincavam em jogos tradicionais, fazendo algazarra... Lembro-me da melopeia de um desses jogos rítmicos, de meninas, semelhante a outos em todo o mundo, por certo, mas de cariz tão próprio: --Amatuêtuêtuê-amatuêtuê la maranga tuê... (Não faço ideia do significado das palavras, ou se seriam apenas onomatopeias inconsistentes e divertidas...) Tudo, tudo me encantava!
A delicadeza das mulheres indianas de saris vaporosos,tranças negras brilhantes e perfumadas e pingo sanguíneo no meio da testa, sobre o nariz, e não raras vezes piercings ornamentando uma das narinas..., misteriosas e belas... As crianças, espantosamente lindas, comoventes, os negrinhos, os chinesinhos, os indús de olheiras já pintadas e sedutoras...
As lojas chinesas, com artigos idos de Macau ou Taiwan, recheadas de maravilhas e mistério...
O bulício alegre dos bazares, sobretudo o Xipamanine, o mercado indígena... Os cheiros exóticos a especiarias, a fruta madura, a terra molhada por aguaceiros diluvianos e breves; o calor que se evolava em ondas do solo encharcado, que logo secava... Os bairros nativos, do caniço, interditos por questões de segurança e preconceito, mas onde a minha desorientação crónica me levava, às vezes, a perder-me, providencialmente... O convívio tão próximo e sem cerimónia, a descontracção dos trajes, da postura; a solidariedade.
As estradas longas, a perder de vista, e os sítios "perto"__ìamos, por vezes tomar café ao Xai- Xai, a 200km__normal. De uma vila, no mato, onde vivia e trabalhava, Mabalane, deslocava-me frequentemente a L.M. para comprar cadernos e livros para a escola, a 450km, ida e volta no mesmo dia, de carro ou de comboio a carvão. E às 7.30 da manhã já estava de novo nas aulas. É verdade que era jovem, mas não era só isso... Talvez a largueza dos horizontes relativizassem as distâncias, ou então são os metros e quilómetros que são "mais compridos" na Europa!... O vasto território cria, decerto essa ilusão de perspectiva...!
As palmeiras e casuarinas, os embondeiros, as micaias... Os mares de capim ondulante... As queimadas...
Que saudades da familiaridade do trato... Do crescer solto dos meus filhos... Do mar límpido e morno ali tão perto!...
Valorizo muito tudo isto que vivi e ninguém poderá tirar-me. E o enriquecimento pessoal que essas vivências me trouxeram. A possibilidade de trilhar caminhos, depois abandonados mas que recuperei recentemente, não tem preço.
Contudo, não me falem em lugares, ruas, avenidas, jardins da "minha cidade ". Apaguei tudo, voluntariamente, para não sofrer... Mas o baú de sentimentos, de emoções e sensações é aberto de quando em quando, e neles me recreio, me recrio e me refaço.
Alguém, dos que viveram em África e nela foram inoculados pelo vírus da magia, (xicuembo), ou dos que não a conhecendo a imaginam e sentem atracção, estranharão esta imensa saudade de que vos falo?
Não temo voltar lá. Não sei se o farei. Sei que tudo o que amo me espera: a doçura do viver, a simpatia das gentes, a partilha, o sol enorme, as madrugadas serenas mas activas, a noite que cai de repente, a cacimba, os aromas e as cores estão lá. E o viver mais demorado, os ritmos quentes... Nada disso pode ter desaparecido. É a alma de África. São eles que recordo com nostalgia e preenchem a minha saudade.
Se em gelos polares me desnorteio sem a minha estrela guia, sinto tanto a falta do Cruzeiro do Sul e dos céus limpos da minha África!
Ao verem-me desfilar, frequentemente de violeta ou lilás, não se admirem... Às vezes é a falta dos jacarandás, ou da sua ambiência... É a cor da ausência da minha cidade de eleição... Onde até fui feliz, e não sabia. Às vezes saio de magenta, a impossível cor das buganvílias...

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

DÉJEUNER DU MATIN---Jacques Prévert

Il a mis le café
Dans la tasse
Il a mis le lait
Dans la tasse de café
Il a mis le sucre
Dans le café au lait
Avec la petite cuiller
Il a tourné
Il a bu le café au lait
Et il a reposé la tasse
Sans me parler
Il a allumé
Une cigarette
Il a fait des ronds
Avec la fumée
Il a mis les cendres
Dans le cendrier
Sans me regarder
Il s'est levé
Il a mis son chapeau sur sa tête
Il a mis son manteau de pluie
Parce qu'il pleuvait
Il est parti
Sous la pluie
Sans une parole
Sans me regarder
Et moi j'ai pris
Ma tête dans ma main
Et j'ai pleuré.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

"Ele há tanta mulher..."-Marcelino Mesquita

Ele há tanta mulher! mas por que fantasia
Entre tantas, só uma a nossa simpatia
Distingue, escolhe e quer! Uma só avassala,
Nos dulcifica o olhar e nos perturba a fala!
Quando ela passa, o ar tem um perfume casto,
Embriaga o sorrir! Quando nos olha, o vasto
Campo negro do céu, cheio de tanta estrela,
Nenhuma tem, com luz,que imite os olhos dela!
Em tudo nos parece extraordinário ser:
Na graça do andar, no mimo do dizer;
Tudo nela é tão bom, tão engraçado, ilude,
Que a própria imperfeição transforma-se em virtude!
Quando aparece, a alma alegra-se, tão cheia
De luz,como ao domingo o adro duma aldeia!
Quando foge, se afasta, o nosso pensamento
Vai atrás dela louco e carinhoso e atento,
A recordar-lhe o ar, a graça, o todo belo,
O som da sua voz, a cor do seu cabelo,
O que empresta à saudade essa doce tortura...
Quando ela chora, ó céus! que hórrida amargura!
É como se o mar todo, em lágrimas desfeito,
Caísse,sem cessar,dentro do nosso peito!
Ele há tanta mulher! mas por que fantasia
Entre tantas só uma a nossa simpatia
Distingue, escolhe e quer!

VIAJANDO NO TEMPO

Quando a boca me sabe
a terra
e a língua a ranço
estremeço ante a pausa
malévola de qualquer patamar
desconhecido...
Busco harmonia
na viagem presa no casulo
temporal e sinistro
em que a dor danifica
e o medo destrói.
Perante esta postura
viciosa
outra mágoa exterior a mim
Atinge-me no mais fundo
da inutilidade do sofrimento.
Uma mão escondida
que se encrespa
e acaba no covo da minha mão vazia e só
num afecto consentido
que a aquece.
Num ímpeto de ternura inusitada
Atenta escuto a tristeza
que abre oblíqua
um sulco real de compaixão e ternura
no meu espírito
As emoções entrelaçam-se
e palavras empáticas
que consolam sem julgar são-me inspiradas
e ajudam alguém além de mim.
Prefiro partilhar o que me é dado
destecer assim o véu da sombra que em mim sobeja
Forçar sorrisos
e afastar o medo.
O coração sabe sempre
o caminho estreito da auto-cura
e é egoísmo saudável
patente ou subtil
a astúcia de se dar.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Antes que seja tarde----Manuel da Fonseca

Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.




O tempo "ruge", como dizia o outro... A vida urge!

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

DESPEDIDA

Acabou-se? Como assim?...
Tenho narcisos à porta
e a dois passos
Na rua da minha escola
Florescem jacarandás

Fechou-se o círculo em si mesmo
dorido e doce
Com a mesma ternura do princípio
Aceitando já tudo o que veio
e o que há-de vir
sem sobressaltos
Rasgando-me em cada lembrança
(espinho ou dádiva?)

_de onde vem este silêncio
subitamente aberto nas arcadas?

Sei que me dei
Foi muitas vezes difícil o percurso:
As forças traíram-me e a dor fechou-me
ardilosa e crua
Levo comigo sorrisos
Deixo de mim amor amor a rodos
e rosas brancas nos sonhos do porvir
Dobra-se-me a alma
em melancolia
Sangrando de saudade viva
Aqui... Sempre...
perto dos meninos que amei
amo e jamais olvidarei.

ESCOLA NOVA--o início

No desespero apático
De mágoas recalcadas,
Na bruma densa isoladora de almas
Ouve-se um sussurro chamando por "alguém"
"Alguém" que não ouve
Não quer
Não responde(!)
Porque...é "ninguém"...


...E as preces dançam de roda...


Agitam-se ardentes trémulas chamas curiosas
Procurando o contacto das minhas mãos vazias...
...E arrancando delas pedaços de estrelas
Com eles rasgando as trevas...


...E as preces dançam de roda
Cercam-me
Perscrutam-me
Penetram-me


Rostos suplicantes de candura
Querendo acalmar no meu olhar distante
A sua fome de ternura... e saciar nos meus beijos
Ânsias amargas de afectos...


Do Nada estéril
Ergui a minha prece...
Sufoquei a minha sede de ventura
Renunciando à dor
No parto doloroso dos meus sonhos vãos.


Envolvi nos meus longos braços dúcteis
Estuantes de Amor
Os meus filhos... que não me chamam "Mãe"...
Subi com eles a escada íngreme da perfeição
Voaram com as aves...
Eu fiquei... agrilhoada à minha informidade...


(Como ensinar as crianças
A serem felizes...?!!!