quinta-feira, 20 de novembro de 2008

UM NATAL DIFERENTE

No acampamento a noite caíra de repente. Aqui e além fogaréus incipientes iam iluminando as trevas entre os carroções, e lanternas luziam agora em algumas tendas.
Sombras começaram a mover-se e em breve foi acesa uma grande fogueira na clareira central. Juntou-se em volta dela uma pequena multidão.
Os trajes garridos tinham reflexos alegres e as palmas cadenciadas prenunciavam a festa.
Os risos e murmúrios abafados foram-se extinguindo. As violas sincopadas encheram de música a noite e as castanholas começaram a soar. as vozes elevaram-se nas canções mais harmoniosas e alegres.
Então, um venerável ancião, o chefe do clã, o patriarca, destacou-se do povo. Fez-se silêncio.
Falou, comovido, com voz profunda e solene, contando a história antiga e sempre nova do Menino filho dilecto de Deus, Mestre de todos os homens, que viera ao mundo para a todos salvar.
As labaredas subiam mais alto e os rostos iluminavam-se de fervor.
Entoaram-se preces. Uma corrente de fraternidade e paz perpassava pela assembleia.
Ouviram-se de novo as violas, e os cânticos_quase em surdina primeiro e depois num crescendo vibrante, eufórico. As palmas marcaram de novo um ritmo de alegria.
Um par veio dançando em volteios rápidos, e parecia que as chamas ganhavam vida, bailavam, saltavam para a fogueira e volteavam com eles.
Os bailarinos dançavam, dançavam, os seus corpos esbeltos requebravam-se, contorciam-se, sensuais e elásticos, plenos de beleza e arte.
Era a sua maneira de louvar o Senhor, de mostrar o seu contentamento por estarem vivos e entre os seus, por guardarem a Fé e a Esperança que Jesus trouxera ao seu mundo simples.
Outros pares bailavam, em ritmo quase alucinante.
Todos os ciganos participavam desta comunhão quase mística de júbilo e sonho.
As crianças mostravam os rostinhos felizes luzindo, vermelhos do fogo. Algumas erguiam também os bracinhos magros e batiam o pé ao ritmo da música.
Todos lá estavam!
Todos?!... Não.
Rufina, a velha zíngara que tantos invernos vivera, tantas histórias conhecia, estava um pouco afastada, alimentando outra fogueira com gravetos e achas, vigiando-a, cuidando da vitela a assar, dos fritos aromáticos.
Ela garantia sempre outro prazer, não menor, para que a festa fosse completa: a boa cozinha.
Logo chamou, batendo com uma colher de pau numa tampa velha, e dois latagões jovens se aproximaram para carregar o assado.
Outras mulheres mais velhas, porém menos que ela, as suas amigas e ajudantes, já lá estavam, e Rufina juntou-se então ao grupo.
Cantou alegre, batendo as mãos calosas, sorrindo feliz, enrugando mais o rosto envelhecido.
Quis depois contar, quando as conversas se generalizaram, que o churrasco perigara, que a lenha estava húmida e não queria pegar... que lhe doeram as costas, mas tudo passara... e não a ouviram. Nunca a ouviam.
Rufina encolheu os ombros..., ninguém reparou. Não.Desta vez não se importava. O sorriso corajoso alargou-lhe mais a face magra, e a leve sombra do olhar foi afastada por um brilho contente.
Era Natal. Era a festa. Era natural que as suas informações quotidianas fossem ignoradas. O som dos risos e dos cantares devia soar mais alto.
E riu. E cantou. E deixou que o sortilégio da noite, da celebração, do gozo de ver todos satisfeitos,
comendo prazerosos as iguarias que preparara, tomasse conta de si. Um brilho difernte assomava no fundo das suas pupilas cansadas, que o sono, hoje, não embaciava...
Quando todos se deitaram, altas horas, e na clareira só crepitavam levemente as brasas esborralhadas das fogueiras, Rufina entregou ao descanso o seu corpo moído, e na tenda partilhada, só os sonhos suaves e tranquilos de paz e harmonia povoaram a sua mente adormecida.

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