segunda-feira, 30 de novembro de 2009

EU SOU PORTUGUÊS AQUI-------------José Fanha

Eu sou português
aqui
em terra e fome talhado
feito de barro e carvão
rasgado pelo vento norte
amante certo da morte
no silêncio da agressão.

Eu sou português
aqui
mas nascido deste lado
do lado de cá da vida
do lado do sofrimento
da miséria repetida
do pé descalço
do vento

Nasci
deste lado da cidade
nesta margem
no meio da tempestade
durante o reino do medo.
Sempre a apostar na viagem
quando os frutos amargavam
e o luar sabia a azedo.

Eu sou português
aqui
no teatro mentiroso
mas afinal verdadeiro
na finta fácil
no gozo
no sorriso doloroso
no gingar de um marinheiro.

Nasci
deste lado da ternura
do coração esfarrapado
eu sou filho da aventura
da anedota do acaso
campeão do improviso
trago as mãos sujas do sangue
que empapa a terra que piso.

Eu sou português
aqui
na brilhantina em que embrulho
no alto da minha esquina
a conversa e a borrasca
eu sou filho do sarilho
no gesto desmesurado
nos cordéis do desenrasca.

Nasci
aqui
no mês de Abril
quando esqueci toda a saudade
e comecei a inventar
em cada gesto
a liberdade.

Nasci
aqui
ao pé do mar
de uma garganta magoada no cantar.
Eu sou a festa
inacabada
quase ausente
eu sou a briga
a luta antiga
renovada
ainda urgente.

Eu sou português
aqui
o português sem mestre
mas com jeito.
Eu sou português
aqui
e trago o mês de Abril
a voar
dentro do peito.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

DEFICIÊNCIAS--------------Mário Quintana br.

escritor gaúcho (Rio Grande do Sul)


"Deficiente" é aquele que não consegue modificar a sua vida, aceitando as imposições de outras pessoas ou da sociedade em que vive, sem ter consciência de que é dono do seu destino.
"Louco" é quem não procura ser feliz com o que possui.
"Cego" é aquele que não vê o seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria, e só tem olhos para uns míseros problemas e pequenas dores.
"Surdo" é aquele que não tem tempo de ouvir um desabafo de um amigo, ou o apelo de um irmão. Pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões no fim do mês.
"Mudo" é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia.
"Paralítico" é quem não consegue andar na direcção daqueles que precisam da sua ajuda.
"Diabético" é quem não consegue ser doce.
"Anão" é quem não sabe deixar o amor crescer. E, finalmente, a pior das deficiências é ser miserável, pois: "Miseráveis" são todos que não conseguem falar com Deus.
"A amizade é um amor que nunca morre".

terça-feira, 24 de novembro de 2009

PORONDANDO------------José Carlos Robalo

18

Dois velhos
perguntaram-me
por ti
Não se identificaram,
mas eu
reconheci-os.
Reconheci-os
pelos anéis
e pela serpente
que os abraçava e os unia.
De ti
disse-lhes
que não te conhecia.
E não
menti
porque
não era
de ti
que eu falava.

A SESTA-------Maria da Saudade Cortesão Mendes

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Dentro às persianas encostadas
o sol vagueia pelo chão.
Até o linho se agarra à pele.
O rumor da água nos regos
insinua-se na sesta
alisa o ardor do ar.



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Na planura junto a raia,
o povoado entorpecido
numa ancestral amargura.
Dentro às casas gritos mudos
e olhares magros à espera
que a torre do sol descaia.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

História de um português qualquer-----------José Fanha

Eu já dei a volta ao tecto
já comi muito caril
em Caracas fiz-me preto
em Dacar fiz-me imbecil
fui pedreiro e arquitecto
inventei o alfabeto
e exportei-o para o Brasil.

Nos baldões que a vida dá
de palhaço a sacristão
comprei ouro em Calcutá
vendi tudo em Mormugão
e emendei o alvará
para a filha do Ali-Babá
ter carta de condução.

Receitei muita mezinha
fui ceguinho, surdo e mudo
li a sina a uma rainha
e acertei em quase tudo
mas pisguei-me asinha asinha
numa lata de sardinha
forradinha de veludo.

De balão cheguei à China
ao Japão fui de trenó
aportei à Palestina
montado num Faraó
abusei da nicotina
experimentei a cocaína
viciei-me em pão-de-ló.

Pelas esquinas de damasco
cantei tangos, viras, fados
em Moscovo abri um tasco
para ganhar alguns trocados
vendi secos e molhados
que eu para bem dos meus pecados
sigo em frente e não me enrasco.

Fui judeu na judiaria
escravo louco e espadachim
celebrei a eucaristia
ao passar por Bombaim
curei peste, lepra,azia
divulguei a telefonia
do Alasca até Pequim.

Fiz-me loiro, fui moreno
rei do rock entre sultões
mastiguei muito veneno
sofri ventos e monções
e por Cristo Nazareno
rebentei com o Sarraceno
na melhor das intenções.

Fui muitíssimo importante
numa mesa de café
estraçalhei um elefante
nas bolanhas da Guiné
fui soldado e comandante
naveguei no Campo Grande
naufraguei no Cais Sodré.

Vida Passada (a limpo)

Eram histórias de fadas e pastoras
De acidentes
e vítimas inocentes
que me forjavam o sono
promoviam o sonho
e ensinavam gratidão e compaixão
Um cãozito de palha e feltro que me aturava
as birras e frustrações
consolava a tristeza e ensopava os ralhos
Foi noutro tempo noutra vida
que eu tive
em pequenita
sentada confortável no tapete
interpelava na rua os passantes
e já tentava conhecê-los melhor
Que aconteceu depois
que fiquei criança melancólica
introvertida e atenta?
Sei que a tristeza fez ninho
no meu colo de menina
e nunca mais me deixou?
Só os livros me seguravam o viver
Logo após um átomo de liberdade
espremida de terrores
a casa rural da avó, à beira da cidade
a gaveta dos tesouros ancestrais: Apicultura Histórias Bíblicas
(a pia Judite e desde aí o horror a manipulação)
O quintal pequeno e varrido
as figueiras que trepava
a ponte entre o real e outras vidas
a queda a dor o orgulho bizarro de ter sobrevivido
Mais tarde desafiar o medo no telhado
suspensa entre o susto do abismo e as lages na rua
O meu segredo assustador
fiapos de conversas misteriosas
a vergonha de ser tonta e enganada
DEPOIS
A cidade em meu olhar
vestígios de muralhas
uma lagartixa oculta em fendas de ansiedade
o Sonho de dançar
O que eu ensaiava!
Os beijos no espelho
os véus dos cortinados
as pérolas falsas "emprestadas" pela transgressão
Fantasiava beleza e mil seduções
que nunca soube jogar
os policiais escondidos
a vontade de inovar
de fazer diferente Os dedos curvados
e os olhos escorrendo ternura carente e magoada
Mais à frente vesti essa mágoa
Tentei moldar-me à forma repetida
que a vida me queria dar
Acreditei que nada mais
nada diferente
nada melhor merecia
Escolhi as sombras para chorar
calei as ideias e vontades
os gritos os sonhos
a revolta
calei-me incómoda e desajustada
Até que não! As asas romperam
e voei!

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Remorso sem Sentido------------José Gomes Ferreira

Todos os punhais que fulgem nos gritos,
todas as fomes que doem no pão
todo o suor que luz nas estrelas
todas as cruzes no peso dos braços,
todos os crimes nas penas das pombas,
todas as lanças nos dedos de reza,
todas as feridas que cheiram nos cravos,
todas as sedes com asas nas nuvens,
toda a inveja na limpidez dos espelhos,
todos os soluços para ressuscitar os filhos mortos,
todos os desejos nos alçapões do Frio,
todos os assassinos que andaram ao colo das mães,
todos os olhos pegados nas jóias das montras,
todos os atestados de pobreza com lágrimas de carimbo,
todos os murmúrios do sol, no quarto ao lado, à hora da morte...

Tudo, tudo, tudo
se condensou de repente
numa nuvem negra de milhões de lágrimas
a humilharem-me de ternura
_eu que quero ser alheio, duro, indiferente...

... enquanto os Outros dançam, cantam, bebem,
vivem, amam, riem, suam
neste pobre planeta
magoado das pedras e dos homens
onde cresceu por acaso o meu coração no musgo
aberto para a consciência absurda
deste remorso sem sentido

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Memória do Corpo-2-----------Rosa Lobato de Faria

Nos pés sinto o macio
das meias de algodão
que defendem a pele
da terra das sandálias.

Nas mãos palpo tesouros
no segredo dos bolsos
do bibe de quadrados
que cheira a ferro quente.

Na linha do umbigo
um elástico aperta
as cavas incomodam
na blusa que encolheu
há uma comichão
na nádega redonda
no joelho esfolado
repuxa a cicatriz.

o cieiro macula
a seda da bochecha
há um dente que falta
e que custa a nascer
a franja sobre os olhos
precisa ser cortada
as pestanas a jeito
decompõem a luz.

A minha mãe presente
é sobretudo a saia:
o seu perfume quente
é sobretudo a anca.
E as conversas de adulto
imensamente alheias
desenrolam-se aquém
do que em mim se formula.

É a hora interior
de ter que estar quieta
de olhar com atenção
as rosas do tapete:
que bom imaginar
grutas sob as cadeiras
o vermelho é a areia
o azul é o mar.

Desembrulho um bombom
que guardei todo o dia
está mole e pegajoso
a prata não descola
mas a língua descobre
o seu gosto a metal
e cospe sob a mesa
os destroços brilhantes.

Depois é só juntá-los
fazer uma bolinha
segurá-la nos dentes
entre o cuspo castanho
e já tenho um navio
no azul do tapete
a contornar os perigos
das rosas delirantes.

É hora de dormir
já me levam ao colo
lambuzo a chocolate
o pescoço da mãe
o elástico desce
o chichi é tão quente
o pé fica dormente
se me deixam aqui.


O quarto é outro mundo
o escuro conhecido
a mancha da parede
tem um gato que eu sei
e o beijo da mãe
a roupa aconchegada
são o dom do prazer
ao corpo absoluto.

O sono é outra coisa:
o cheiro da almofada
a posição de feto
a orelha tapada.

E por dentro da cama
em segredo só meu
saboreio a palavra
que uma fada me deu.

Pelas mãos e pelos olhos eu juro 3--------Alice Vieira

deixa que eu te diga as palavras enormes
que se erguem hoje das ruas gretadas
pelo rigor súbito de agosto

delas nascerá sempre o verbo justo
de sons claros e rectilíneos
com a ração de lua e mar que ainda me deves
escondida em todos os desertos por onde andei
sabendo que estavas muito longe mas que estar aqui
era ainda muito mais longe

apesar disso houve sempre
palavras enormes à nossa espera
que fomos largando pelos corredores das casas
onde lentamente morríamos ao som cruel da infância

mas talvez o futuro tenha começado agora mesmo
com este nome mais verdadeiro e menos gasto
com estas mãos com estes olhos
com que juramos regressar ao que um dia habitámos
às palavras rigorosas e claras
que descobriram outros brandos lugares
para esperarem por nós de sílabas lavadas

como o chão da casa onde largámos o medo
e os seus mais antigos significados

Em carne viva------------José Fanha

Abriu-se a porta
sobre o ovo doce da infância
e o mundo desabou.

Uma grande tempestade
de vidros e vozes aguçadas
retalhou o ar sereno
de um mês nocturno
que não sei localizar com toda a exatidão.

Dançaram no ar navalhas.
Rasgaram-se bocas.
Derramaram-se vasos
de uma essência pestilenta.
Garras de sauros rasgaram
toda a doçura da noite.

Foi aí aí aí
no centro gelado da mais profunda aflição
que um dia comecei a lembrar-me
de mim
quando uma porta se abriu
e o mundo se estilhaçou.

Anti- Anne Frank----------António Gedeão

Esta criança esquálida.
de riso obsceno e olhares alucinados,
nunca apertou nas mãos a fria face pálida,
nunca sentiu, na escada, as botas dos soldados,
nunca enxugou as lágrimas que aniquilam e esgotam,
nunca empalideceu com o metralhar de um tanque,
nem rastejou num sótão,
nem se chama Anne Frank.

Nunca escreveu diário nem nunca foi à escola,
nem despertou o amor de editores piedosos.
Nunca estendeu as mãos em transes dolorosos
a não ser nos primores da técnica da esmola.

Batem-lhe, pisam-na, insultam-na, sem que ninguém se importe.
E ela, raivosa e pálida,
morde, estrebucha, cospe, odeia até à morte.

Pobre criança esquálida!
Até no sofrimento é preciso ter sorte.