quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

de António Ramos Rosa

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola
do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu
cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa noite só comprida
num quarto só.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

SOSSEGA, CORAÇÃO---------Fernando Pessoa

Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!


Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

IRENE NO CÉU---------Manuel Bandeira

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:
_Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
_Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

de Rosa Lobato de Faria (sempre)

17.
O meu compromisso não é com a memória
com os pedaços de pele
que deixei na boca dos cães
com a inquietação das ondas
que me temperaram de sal e tempestade

O meu compromisso não é com o riso
nem com os gritos nem com as lágrimas
O meu compromisso não é com os olhares
com os murmúrios com o vento

O meu compromisso não é contigo
por mais que eu te ame
e sejas o voo da minha liberdade

O meu compromisso místico e solene
é com o corpo exacto fugidio sedutor
equívoco imperativo do não dito

O meu compromisso
é com as palavras.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Rosa Lobato Faria

Deixem-me transcrever os seus versos, que não me canso...


19. De novo os passos, mansos, nas escadas.
De novo as chaves a cantar na porta.
Tulipas de silêncio amedrontadas
aguardam o sorriso que conforta.
De novo as mãos onde despontam rios.
De novo os olhos onde oscila a lua.
E desato as amarras dos navios
e das palavras que me fazem tua.
Chegar é confessar que me desejas.
Calar é confirmar que não dispenso
o gesto em que, gaivota, me insinuo...
Se de leve no ombro tu me beijas
Pela seda da roupa te pertenço
pela sede da boca te possuo.

de Rosa Lobato de Faria

Na verdade, os Poetas não morrem. Há mais uma estrelinha a brilhar no firmamento, e a Poesia essencial invadiu o universo.



12.
Partiste mas levaste o meu perfume
Partiste mas levaste rente à pele
esse cheiro de lume
esse rasto de mel.

Pensaste que eu deixava de ser teia
quando já não ouvisses o meu grito.
Esqueceste que te enleia
esse aroma infinito.

Hás-de reconhecer por muito tempo
que uma gota de essência te condena
a lembrar este amor.
A fogo lento.
Enquanto eu for poema.

de Rosa Lobato Faria

8.
Foi na pele de um poema a tiritar de frio
que encontrei de perfil teu corpo de navio


Tinha para aquecer-te um luar de teatro
projectado a fingir na sombra do meu quarto


Tinha para banhar-te um rio de água doce
e toda a minha arte de amar como se fosse


Aquele que viajou à proa da vertigem
não quer luas de cal nem lampejos que fingem


Quem foi dono do mar não vai beber ao rio.
Ficaste no poema a tiritar de frio.

de Rosa Lobato Faria

19.
Se eu morrer de manhã
abre a janela devagar
e olha com rigor o dia que não tenho.

Não me lamentes. Eu não me entristeço:
ter tido a noite é mais do que mereço
se nem conheço a noite de que venho.

Deixa entrar pela casa um pouco de ar
e um pedaço de céu
_o único que sei.

Talvez um pássaro me estenda a asa
que não saber voar
foi sempre a minha lei.

Não busques o meu hálito no espelho.
Não chames o meu nome que eu não venho
e do mistério nada te direi.

Diz que não estou se alguém bater à porta.
Deixa que eu faça o meu papel de morta
pois não estar é da morte quanto sei.

ACONTECEU POESIA--------Fernando Vieira

A Poesia
Não é tão rara como parece.
Na mais ínfima das coisas
A Poesia acontece.
Aconteceu Poesia
Quando em teus olhos cor do céu
Vi o pedaço de céu que me cabia.
Aconteceu Poesia
Quando as tuas mãos,
Numa carícia vaga,
Moldaram em meu rosto o ar de angústia
Que o tempo não apaga.
Aconteceu Poesia
Quando em teus olhos cor do céu
Vi o pedaço de céu que me fugia.
E até no dia em que morreste,
Mãe,
Aconteceu Poesia.

ELEGIA ÀS MINHAS MÃOS---------OLGA KROG

Morri! Morri finalmente,
Meu Amor...
Sob a terra onde outrora
Nos sentámos jaz,
Sozinho e frio,
Meu corpo em flor...
Minhas mãos,
Mãos que amaram,
Que afagaram,
Que escreveram,
Minhas mãos
Já não são mãos.
São ossos descarnados,
Sem sentido.
São cadáveres.
São cavernas.
São abismos onde os vermes se esconderam.
Ah! Minhas mãos!
Já não são mãos
As minhas mãos que te escolheram.
Vem vê-las, meu Amor:
Têm carpo, metacarpo e têm dedos.
Têm medos e horror...
Têm frio!
São de terra as minhas mãos.
São a Morte, as minhas mãos...
Que só são mãos
Por guardarem
A ilusão do teu calor.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O LADRÃO DE VERSOS--------Rui Knopfli

Uma gargalhada de meu filho
rouba-me um verso. Era,
se não erro, um verso largo,
enxuto e musical. Era bom
e certeiro, acreditem, esse verso
arisco e difícil, que se soltara
dentro de mim. Mas meu filho
riu e o verso despenhou-se no cristal
ingénuo e fresco desse riso. Meu Deus,
troco todos os meus versos
mais perfeitos pelo riso antigo
e verdadeiro do meu filho.

ainda de ROSA LOBATO de FARIA

Primeiro a tua mão sobre o meu seio.
Depois o pé _ o meu _ sobre o teu pé.
Logo o roçar urgente do joelho
e o ventre mais à frente na maré.

É a onda do ombro que se instala.
É a linha do dorso que se inscreve.
A mão agora impõe, já não embala
mas o beijo é carícia, de tão leve.

O corpo roda: quer mais pele, mais quente.
A boca exige: quer mais sal, mais morno.
Já não há gesto que se não invente,
ímpeto que não ache um abandono.

Então já a maré subiu de vez.
É todo o mar que inunda a nossa cama.
Afogados de amor e de nudez
somos a maré alta de quem ama.

Por fim o sono calmo, que não é
senão ternura, intimidade, enleio:
o meu pé descansado no teu pé,
a tua mão dormindo no meu seio.

Modesta Homenagem a Rosa Lobato Faria

afirmas que brigámos. Que foi grave.
Que o que dissemos já não tem perdão.
Que vais deixar aí a tua chave
e vais à cave içar o teu malão.

Mas como destrinçar os nossos bens?
Que livro? Que lembrança? Que papel?
Os meus olhos, bem vês, és tu que os tens.
Não te devolvo_ é minha_ a tua pele.

Achei ali um sonho muito velho,
não sei se o queres levar, já está no fio.
E o teu casaco roto, aquele vermelho
que eu costumo vestir quando está frio?

e a planta que eu comprei e tu regavas?
E o sol que dá no quarto de manhã?
É meu o teu cachorro que eu tratava?
É teu o meu canteiro de hortelã?

A qual de nós dois pertence este destino?
Este beijo era meu? Ou já não era?
E o que faço das praias que já não vimos?
Das marés que estão lá à nossa espera?

Dividimos ao meio as madrugadas?
E a falésia das tardes de Novembro?
E as sonatas que ouvimos de mãos dadas?

De quem é esta briga? Não me lembro.