quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Natal, e não Dezembro------------------David Mourão Ferreira

Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos depressa, em qualquer sítio,
Porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

NATAL----------Manuel Sérgio

Enquanto a chuva
Escorrer da minha vidraça
E furar o telhado
Daquele farrapo de homem que além passa
Enquanto o pão
Não entrar com a Justiça
Lado a lado
Mão a mão
Nem Jesus vem
Andar pelos caminhos onde os outros vão
Um dia
Quando for Natal
(E já não for Dezembro)
E o mundo for o espaço
Onde cabe
Um só abraço
Então
Jesus virá
E será
À flor de tudo o Redentor
Universal
(Quando o Homem quiser
Será Natal)

NATAL------------Álvaro Feijó

Foi numa cama de folhelho,
entre lençóis de estopa suja
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
e foi roçar nas bordas dos caminhos
manadas de ervas
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das paredes
e o crepitar do fogo,
enroscada num cesto vindimeiro,
que não havia berço
naquela casa.
E ninguém conta a história do menino
que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroas de espinhos
mas coroas de baionetas
postas até ao fundo do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história do menino.
Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo.

ORAÇÂO DE NATAL----------------António Cabral

Perdão, Senhor, para quantos
na noite de Natal
confundem o teu nome
com o seu desejo.

KYRIE----------------JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS

Em nome dos que choram,
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e os destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Os Degraus do Tempo---------Rosa Alice Branco

Costumava sentar-me no degrau mais alto
e pela janela via as árvores balouçarem
no silêncio da casa, o silêncio
de ter estado ali há muito tempo
esperando que viesses como agora espero
que o tempo se desdobre na memória
que te guarda.
O mundo era infinito
e a minha existência estava no teu rosto
à espera de um gesto que a desenhasse
para que pudesses nascer todos os dias. Sentados no degrau mais alto
escutávamos o rumor das árvores,
a folha de um choupo a cair na água
e os círculos minúsculos que se afastavam
até desaparecerem
no vocabulário das palavras curtas
rabiscadas no vidro da janela.

Era assim o mundo
na ignorância de que uma lágrima
se soma às vezes ao destino
e é suficiente para alterar o movimento da terra
e o sabor das letras pisadas
fermentando sozinhas na casa
enquanto o amanhã atravessa o umbral da porta
acima de todas as virtudes,
alimentando o vício de voltar atrás
e subir até ao degrau mais alto
para conceder o último desejo.

GRAÇA PIRES

Manchado de sal, o silêncio escorre-nos na cara.
Os meus olhos tropeçam em raízes antigas
e movem-se-me, na memória, indecifráveis sinais:
marcas de nascimento, lugares e pessoas, gestos
e palavras. É madrugada. Os pássaros evitam
os voos rasantes, porque as últimas sombras
da noite lhes ferem as pupilas.

O POEMA ENSINA A CAIR -----------------LUIZA NETO JORGE

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra se abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

FUGAS

Porque me entretêm tanto as séries policiais? A acção. O envolvimento humano. O envolvimento científico e rigoroso (?). Os casos românticos entre os agentes da lei. As estórias dos criminosos. A futilidade disto tudo... Necessária e qb. As investigações... As motivações. (Há sempre uma razão a desencadear uma acção, acredito...) A eterna luta entre o Bem e o Mal, sendo que as fronteiras são definidas, e por mais ardiloso e hábil que se esconda o "outro" lado, as situações raro se extremam e o Bem acaba por vencer. Entender o perfil tortuoso dos prevaricadores. Conhecê-los por dentro.
As investigações forenses.
Estendo a minha mágoa na mesa de autópsias e deixo cortar, retalhar, sopesar, analisar... Espectadora externa e de mim mesma... E penso que funciona. No pouco tempo que dedico à TV, é das pouquíssimas coisas que consigo ver. Talvez quando me curar me canse. Também me cansei das novelas, que já não suporto. Na ficção os comportamentos obedecem a alguma lógica. Há motivos e remédios. E tudo, normalmente acaba bem. A realidade é diferente. De certo modo as personagens reais parecem imprevisíveis. A razão a que obedecem é superior e oculta, não se vislumbra o fim dos mistérios, o enredo é mais decepcionante. Por falta de Fé. Eu sei. E de Amor. De Caridade. Parece que estou a ficar novamente moralista. Fico por aqui.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

EU SOU PORTUGUÊS AQUI-------------José Fanha

Eu sou português
aqui
em terra e fome talhado
feito de barro e carvão
rasgado pelo vento norte
amante certo da morte
no silêncio da agressão.

Eu sou português
aqui
mas nascido deste lado
do lado de cá da vida
do lado do sofrimento
da miséria repetida
do pé descalço
do vento

Nasci
deste lado da cidade
nesta margem
no meio da tempestade
durante o reino do medo.
Sempre a apostar na viagem
quando os frutos amargavam
e o luar sabia a azedo.

Eu sou português
aqui
no teatro mentiroso
mas afinal verdadeiro
na finta fácil
no gozo
no sorriso doloroso
no gingar de um marinheiro.

Nasci
deste lado da ternura
do coração esfarrapado
eu sou filho da aventura
da anedota do acaso
campeão do improviso
trago as mãos sujas do sangue
que empapa a terra que piso.

Eu sou português
aqui
na brilhantina em que embrulho
no alto da minha esquina
a conversa e a borrasca
eu sou filho do sarilho
no gesto desmesurado
nos cordéis do desenrasca.

Nasci
aqui
no mês de Abril
quando esqueci toda a saudade
e comecei a inventar
em cada gesto
a liberdade.

Nasci
aqui
ao pé do mar
de uma garganta magoada no cantar.
Eu sou a festa
inacabada
quase ausente
eu sou a briga
a luta antiga
renovada
ainda urgente.

Eu sou português
aqui
o português sem mestre
mas com jeito.
Eu sou português
aqui
e trago o mês de Abril
a voar
dentro do peito.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

DEFICIÊNCIAS--------------Mário Quintana br.

escritor gaúcho (Rio Grande do Sul)


"Deficiente" é aquele que não consegue modificar a sua vida, aceitando as imposições de outras pessoas ou da sociedade em que vive, sem ter consciência de que é dono do seu destino.
"Louco" é quem não procura ser feliz com o que possui.
"Cego" é aquele que não vê o seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria, e só tem olhos para uns míseros problemas e pequenas dores.
"Surdo" é aquele que não tem tempo de ouvir um desabafo de um amigo, ou o apelo de um irmão. Pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões no fim do mês.
"Mudo" é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia.
"Paralítico" é quem não consegue andar na direcção daqueles que precisam da sua ajuda.
"Diabético" é quem não consegue ser doce.
"Anão" é quem não sabe deixar o amor crescer. E, finalmente, a pior das deficiências é ser miserável, pois: "Miseráveis" são todos que não conseguem falar com Deus.
"A amizade é um amor que nunca morre".

terça-feira, 24 de novembro de 2009

PORONDANDO------------José Carlos Robalo

18

Dois velhos
perguntaram-me
por ti
Não se identificaram,
mas eu
reconheci-os.
Reconheci-os
pelos anéis
e pela serpente
que os abraçava e os unia.
De ti
disse-lhes
que não te conhecia.
E não
menti
porque
não era
de ti
que eu falava.

A SESTA-------Maria da Saudade Cortesão Mendes

............................
......................



Dentro às persianas encostadas
o sol vagueia pelo chão.
Até o linho se agarra à pele.
O rumor da água nos regos
insinua-se na sesta
alisa o ardor do ar.



......................
............................



Na planura junto a raia,
o povoado entorpecido
numa ancestral amargura.
Dentro às casas gritos mudos
e olhares magros à espera
que a torre do sol descaia.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

História de um português qualquer-----------José Fanha

Eu já dei a volta ao tecto
já comi muito caril
em Caracas fiz-me preto
em Dacar fiz-me imbecil
fui pedreiro e arquitecto
inventei o alfabeto
e exportei-o para o Brasil.

Nos baldões que a vida dá
de palhaço a sacristão
comprei ouro em Calcutá
vendi tudo em Mormugão
e emendei o alvará
para a filha do Ali-Babá
ter carta de condução.

Receitei muita mezinha
fui ceguinho, surdo e mudo
li a sina a uma rainha
e acertei em quase tudo
mas pisguei-me asinha asinha
numa lata de sardinha
forradinha de veludo.

De balão cheguei à China
ao Japão fui de trenó
aportei à Palestina
montado num Faraó
abusei da nicotina
experimentei a cocaína
viciei-me em pão-de-ló.

Pelas esquinas de damasco
cantei tangos, viras, fados
em Moscovo abri um tasco
para ganhar alguns trocados
vendi secos e molhados
que eu para bem dos meus pecados
sigo em frente e não me enrasco.

Fui judeu na judiaria
escravo louco e espadachim
celebrei a eucaristia
ao passar por Bombaim
curei peste, lepra,azia
divulguei a telefonia
do Alasca até Pequim.

Fiz-me loiro, fui moreno
rei do rock entre sultões
mastiguei muito veneno
sofri ventos e monções
e por Cristo Nazareno
rebentei com o Sarraceno
na melhor das intenções.

Fui muitíssimo importante
numa mesa de café
estraçalhei um elefante
nas bolanhas da Guiné
fui soldado e comandante
naveguei no Campo Grande
naufraguei no Cais Sodré.

Vida Passada (a limpo)

Eram histórias de fadas e pastoras
De acidentes
e vítimas inocentes
que me forjavam o sono
promoviam o sonho
e ensinavam gratidão e compaixão
Um cãozito de palha e feltro que me aturava
as birras e frustrações
consolava a tristeza e ensopava os ralhos
Foi noutro tempo noutra vida
que eu tive
em pequenita
sentada confortável no tapete
interpelava na rua os passantes
e já tentava conhecê-los melhor
Que aconteceu depois
que fiquei criança melancólica
introvertida e atenta?
Sei que a tristeza fez ninho
no meu colo de menina
e nunca mais me deixou?
Só os livros me seguravam o viver
Logo após um átomo de liberdade
espremida de terrores
a casa rural da avó, à beira da cidade
a gaveta dos tesouros ancestrais: Apicultura Histórias Bíblicas
(a pia Judite e desde aí o horror a manipulação)
O quintal pequeno e varrido
as figueiras que trepava
a ponte entre o real e outras vidas
a queda a dor o orgulho bizarro de ter sobrevivido
Mais tarde desafiar o medo no telhado
suspensa entre o susto do abismo e as lages na rua
O meu segredo assustador
fiapos de conversas misteriosas
a vergonha de ser tonta e enganada
DEPOIS
A cidade em meu olhar
vestígios de muralhas
uma lagartixa oculta em fendas de ansiedade
o Sonho de dançar
O que eu ensaiava!
Os beijos no espelho
os véus dos cortinados
as pérolas falsas "emprestadas" pela transgressão
Fantasiava beleza e mil seduções
que nunca soube jogar
os policiais escondidos
a vontade de inovar
de fazer diferente Os dedos curvados
e os olhos escorrendo ternura carente e magoada
Mais à frente vesti essa mágoa
Tentei moldar-me à forma repetida
que a vida me queria dar
Acreditei que nada mais
nada diferente
nada melhor merecia
Escolhi as sombras para chorar
calei as ideias e vontades
os gritos os sonhos
a revolta
calei-me incómoda e desajustada
Até que não! As asas romperam
e voei!

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Remorso sem Sentido------------José Gomes Ferreira

Todos os punhais que fulgem nos gritos,
todas as fomes que doem no pão
todo o suor que luz nas estrelas
todas as cruzes no peso dos braços,
todos os crimes nas penas das pombas,
todas as lanças nos dedos de reza,
todas as feridas que cheiram nos cravos,
todas as sedes com asas nas nuvens,
toda a inveja na limpidez dos espelhos,
todos os soluços para ressuscitar os filhos mortos,
todos os desejos nos alçapões do Frio,
todos os assassinos que andaram ao colo das mães,
todos os olhos pegados nas jóias das montras,
todos os atestados de pobreza com lágrimas de carimbo,
todos os murmúrios do sol, no quarto ao lado, à hora da morte...

Tudo, tudo, tudo
se condensou de repente
numa nuvem negra de milhões de lágrimas
a humilharem-me de ternura
_eu que quero ser alheio, duro, indiferente...

... enquanto os Outros dançam, cantam, bebem,
vivem, amam, riem, suam
neste pobre planeta
magoado das pedras e dos homens
onde cresceu por acaso o meu coração no musgo
aberto para a consciência absurda
deste remorso sem sentido

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Memória do Corpo-2-----------Rosa Lobato de Faria

Nos pés sinto o macio
das meias de algodão
que defendem a pele
da terra das sandálias.

Nas mãos palpo tesouros
no segredo dos bolsos
do bibe de quadrados
que cheira a ferro quente.

Na linha do umbigo
um elástico aperta
as cavas incomodam
na blusa que encolheu
há uma comichão
na nádega redonda
no joelho esfolado
repuxa a cicatriz.

o cieiro macula
a seda da bochecha
há um dente que falta
e que custa a nascer
a franja sobre os olhos
precisa ser cortada
as pestanas a jeito
decompõem a luz.

A minha mãe presente
é sobretudo a saia:
o seu perfume quente
é sobretudo a anca.
E as conversas de adulto
imensamente alheias
desenrolam-se aquém
do que em mim se formula.

É a hora interior
de ter que estar quieta
de olhar com atenção
as rosas do tapete:
que bom imaginar
grutas sob as cadeiras
o vermelho é a areia
o azul é o mar.

Desembrulho um bombom
que guardei todo o dia
está mole e pegajoso
a prata não descola
mas a língua descobre
o seu gosto a metal
e cospe sob a mesa
os destroços brilhantes.

Depois é só juntá-los
fazer uma bolinha
segurá-la nos dentes
entre o cuspo castanho
e já tenho um navio
no azul do tapete
a contornar os perigos
das rosas delirantes.

É hora de dormir
já me levam ao colo
lambuzo a chocolate
o pescoço da mãe
o elástico desce
o chichi é tão quente
o pé fica dormente
se me deixam aqui.


O quarto é outro mundo
o escuro conhecido
a mancha da parede
tem um gato que eu sei
e o beijo da mãe
a roupa aconchegada
são o dom do prazer
ao corpo absoluto.

O sono é outra coisa:
o cheiro da almofada
a posição de feto
a orelha tapada.

E por dentro da cama
em segredo só meu
saboreio a palavra
que uma fada me deu.

Pelas mãos e pelos olhos eu juro 3--------Alice Vieira

deixa que eu te diga as palavras enormes
que se erguem hoje das ruas gretadas
pelo rigor súbito de agosto

delas nascerá sempre o verbo justo
de sons claros e rectilíneos
com a ração de lua e mar que ainda me deves
escondida em todos os desertos por onde andei
sabendo que estavas muito longe mas que estar aqui
era ainda muito mais longe

apesar disso houve sempre
palavras enormes à nossa espera
que fomos largando pelos corredores das casas
onde lentamente morríamos ao som cruel da infância

mas talvez o futuro tenha começado agora mesmo
com este nome mais verdadeiro e menos gasto
com estas mãos com estes olhos
com que juramos regressar ao que um dia habitámos
às palavras rigorosas e claras
que descobriram outros brandos lugares
para esperarem por nós de sílabas lavadas

como o chão da casa onde largámos o medo
e os seus mais antigos significados

Em carne viva------------José Fanha

Abriu-se a porta
sobre o ovo doce da infância
e o mundo desabou.

Uma grande tempestade
de vidros e vozes aguçadas
retalhou o ar sereno
de um mês nocturno
que não sei localizar com toda a exatidão.

Dançaram no ar navalhas.
Rasgaram-se bocas.
Derramaram-se vasos
de uma essência pestilenta.
Garras de sauros rasgaram
toda a doçura da noite.

Foi aí aí aí
no centro gelado da mais profunda aflição
que um dia comecei a lembrar-me
de mim
quando uma porta se abriu
e o mundo se estilhaçou.

Anti- Anne Frank----------António Gedeão

Esta criança esquálida.
de riso obsceno e olhares alucinados,
nunca apertou nas mãos a fria face pálida,
nunca sentiu, na escada, as botas dos soldados,
nunca enxugou as lágrimas que aniquilam e esgotam,
nunca empalideceu com o metralhar de um tanque,
nem rastejou num sótão,
nem se chama Anne Frank.

Nunca escreveu diário nem nunca foi à escola,
nem despertou o amor de editores piedosos.
Nunca estendeu as mãos em transes dolorosos
a não ser nos primores da técnica da esmola.

Batem-lhe, pisam-na, insultam-na, sem que ninguém se importe.
E ela, raivosa e pálida,
morde, estrebucha, cospe, odeia até à morte.

Pobre criança esquálida!
Até no sofrimento é preciso ter sorte.

sábado, 24 de outubro de 2009

LE VIEUX CAUCHEMAR------------Olavo d'Eça Leal

Je me sens si las, parfois
si achevé,
Par ma faiblesse infantine,
Que j'aurais voulu mourir,
comme ça, sur les genoux de ma mère.


Ma mère me dit souvent,
Quelle voudrait me voir finir,
pour m'entourer de tendresse
jusqu'au dernier moment...


J'entrevois ce jour de malheur,
qui sera un peu déplacé,
dans ma chambre si gaie,
aux rideaux rouges,
si voyants!
Surtout la paleur des bougies
si hautes, allumés au bout,
fera tomber sur moi,
des reflets jaunes et ternes,
de vieux cadavre desséché...


Ce jour lá,tout pleur est inutile,
car on doit être content
que ce soi moi, le mort!


Mais, après tout,
ce qui me fait le plus de peine,
ce sont les fleurs artificielles,
qu'on apporte toujours
dans ces jours pénibles...
Elles ont l'air de petites filles malades,
et restent longtemps, oubliées,
dans les coins poussièreux...


Mère: te souviens-tu ce rêve,
qu'on a fait jadis?
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
ce fut un long rêve gris,
qui ressemble, il me semble,
à la danseouaté!...

WORDS; WORDS... -----------------Augusto Gil

Contam que em pequenino costumava,
Ao ver-me num cristal reproduzido,
Beijar a própria boca, em que julgava
Ver a boca d'alguém desconhecido.

Cresci. Amei-a. E tão alheio andava
No sonho por seus olhos promovido,
Que em vez de cartas que Ela me mandava,
Eu lia o que trazia no sentido.

Rodou o tempo. Estou doente e velho...
Agora, se me acerco d'um espelho,
_ Oh! meus cabelos, noto que alvejais...

E as cartas d'Ela, se as releio agora,
Só vejo por aquelas linhas fora
Palavras e palavras. Nada mais!

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

NÃO QUEIRAS A PIEDADE DE NINGUÉM---Fernanda de Castro

Não queiras a piedade de ninguém.
Faz do teu orgulho uma couraça.
A piedade é uma forma de desdém.
Nunca peças esmolas a quem passa.


Mostra, em silêncio, que tens nervo, raça,
e espera. Atrás do tempo, tempo vem.
E se a ventura for rebelde ou escassa,
que seja o orgulho o teu supremo bem.


Ah, que filosofia clara e certa
se porventura é para desejar
ter uma alma forte mas deserta.


Se o mal, porém, é justamente amar?
Vá lá tocar-se numa chaga aberta
sem pelo menos a fazer sangrar!

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

SÚPLICA------------------Pedro Laranjeira

Dá-me um minuto de ti!
Seja o que for que tenhas de fazer
p'ra tal coisa conseguir...,
...FAZ!
Deixa que no 'spaço dum minuto
Fiquemos os dois sós no Mundo
a olhar o nosso olhar!... ...
Não fales... não... não te mexas...
olha... só...

... serei feliz!...

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

"CÂNTICO NEGRO"_______José Régio

Vem por aqui! _ dizem-me alguns
Com olhos doces, estendendo-me os braços
E seguros de que seria bom Que eu os ouvisse
Quando me dizem_ «vem por aqui!»
Eu olho-os com olhos lassos,
Há nos meus olhos ironias e cansaços,
E cruzo os braços,
E nunca vou por aí.

A minha glória é esta: criar desumanidade.
Não acompanhar ninguém.
Que eu vivo com o mesmo sem vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.
Se vim ao mundo foi só p'ra desflorar florestas virgens
E desenhar meus próprios pés
Na areia inexplorada.
O mais que faço não vale nada.

Não, não vou por aí!
Só vou por onde me levam
Meus próprios passos.
Se ao que busco saber
Nenhum de vós responde,
Porque me repetis_ Vem por aqui?!
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí.

Corre nas vossas veias
Sangue velho dos avós
E vós amais o que é fácil.
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo a Loucura, as Torrentes, os Desertos.
Como pois sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas
E coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?

Ide! Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos
E tendes regras e tratados
E filósofos e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a como um facho
A arder na noite escura
E sinto desespero e sal
E cânticos nos lábios.

Deus e o Diabo é que me guiam.
Mais ninguém.
Todos tiveram pai.
Todos tiveram mãe. Mas eu,
Que nunca principio nem acabo
Sou filho do amor que há
Entre Deus e o Diabo.

Ah! Que ninguém me dê
Piedosas intenções.
Ninguém me peça definições.
Ninguém me diga: vem por aqui!

A minha vida é um vendaval
Que se soltou. É uma onda
Que se alevantou.
É um átomo a mais
Que se animou.
Não sei por onde vou.
Não sei para onde vou.
Sei que não vou por aí!

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

E POR VEZES-------------David Mourão Ferreira

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

POESIA-------------------Fernando Pinto do Amaral

Quando já não há nada
absolutamente nada pra dizer
e cada dia te parece apenas
uma longa e inútil sequência
de vinte e quatro horas vazias;

quando uma folha de papel
é um deserto branco já sem rosto,
um firmamento sem constelações,
uma página nua, uma página
muda,
há dois rápidos olhos que te falam
desde sempre da terra prometida.

Consegues fixá-los? Não tens medo?
Vê como arde súbito o seu gelo
no fundo das pupilas
e não hesites_ rouba essa vertigem
à madrugada de Jerusalém
porque às vezes não há outra saída
para algumas palavras que ainda podem
ser um arco uma flecha
perto do alvo que ninguém conhece.

Soneto-----------Maria do Ó Caeiro

Sinto-me triste, abandonada e só.
Minha alma vive como noite escura...
Ninguém de mim tem pena, nem tem dó.
Ninguém sabe de mim, ou me procura.

E quanto durará esta tortura?
Ninguém o sabe, nem eu sei também.
Que me feches os olhos com ternura,
Deus me conceda, ao menos, esse bem.

E vou esperando, sem perder a fé,
Que nesse dia te terei ao pé,
Com alegria, em vez de sofrimento.

Se vejo esse minuto enfim chegado!
...Só p'ra te ter ao pé, meu bem amado,
Rogo a Deus que abrevie esse momento.

NEC TECUM NEC SINE TE------Mário Albuquerque

Nem sem ti, nem contigo. O meu amor
Entre duas angústias se reparte:
Nem sem ti, meu bem, seja onde for,
Nem contigo, meu amor, por toda a parte.

Se me foges, deliro a procurar-te.
E se te alcanço, que infinita dor
Saber que nunca sabes entregar-te
Ao beijo que é em mim prece e fervor...

Nem sem ti, nem contigo. O tempo corre.
Uma hora que nasce, outra que morre.
Tudo é viver. Tudo é morrer em vão.

Amar-nos-emos nós, tristes amantes?
Sim. Nossos corpos dizem como dantes.
Nossas almas hostis dizem que não.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

de REINALDO FERREIRA

Que de nós dois
O mais sensato sou eu,
_É uma forma delicada
De dizeres que sou mais velho.
Ora é verdade
Ser eu quem tem mais idade.
Mas daí a ter juízo
Vai um abismo tão grande
Que é preciso,
Com certeza,
Que o digas com ironia
E nenhuma simpatia
Pelo engano em que vivo.
O engano de ter rugas
E nunca fitar um espelho...
Vê lá tu que eu não sabia
Que sou dos dois o mais velho.

sábado, 10 de outubro de 2009

"Banco de Tempo"

Tarde serena de outono.
Findo o almoço as crianças borboleteavam pelo quintal, entravam e saíam da cozinha num desassossego comedido. Esperavam visitas diferentes.
Em breve chegaram as ajudantes: senhoras amigas da tia Marta que, inscritas como ela no Banco de Tempo, vinham dar uma ajuda na confecção das compotas da época.
Os miúdos espreitavam, contentes e ansiosos, os preparativos culinários. Nem se atreviam a arredar pé da vizinhança do teatro das operações. Não houve brincadeira divertida que os levasse, nem por breves instantes, na procura de folguedos.
Dentro em breve teria lugar um ritual da estação. Perante os seus sentidos despertos iria desencadear-se pura magia.
Eram as conversas das mulheres, noutras alturas sem interesse para eles, mas tornadas aliciantes pela novidade, pela cumplicidade.
Foram as frutas descascadas, os caroços tirados, a alquimia resultante do cozinhar demorado das iguarias em grandes panelas, os odores quentes e doces, quase pungentes, mas deliciosos...
Depois, foi-lhes dado a provar as primeiras colheradas. Devidamente apreciadas. Gulosamente aprovadas.
Os doces a rescenderem em cima do fogão... As grandes colheres de pau, mexendo os preparados espessos e olorosos.O aproveitamento das cascas e caroços em geleias deliciosas e nutritivas...
Seria necessário envolver em mais mistério o dia longo para espicaçar as imaginações infantis?
Depois, a tia Marta ajudada pelas amigas mais corpulentas trouxeram frascos, potes e boiões, tigelas de vários tamanhos, que colocaram em cima da grande mesa coberta de oleado aos quadrados.
Colocadas colheres compridas de metal estrategicamente dentro dos vidros, para não quebrarem com o calor, neles despejaram com cuidado os doces, que tão afanosamente cozinharam. As tigelas ou malgas ficaram para a marmelada.
A luminosidade meiga da tarde a atravessar a quase transparência colorida dos frascos, a beleza translúcida do seu brilho; o som das conversas, o borbulhar das panelas, os risos abafados, o sabor especial e único das grossas fatias de pão mole, cobertas pelos primeiros paladares, doces e mornos... Que encantamento! Que beleza!
Depois, ainda a azáfama do lavar dos utensílios, arrumar a cozinha, do dispor os frascos por espécie e por tamanho nas prateleiras da despensa... E de novo as conversas:
Combinar a próxima ajuda. Conferir disponibilidades.
As despedidas e a oferta de um pote de doce a cada visita. A simpatia. A alegria de terem estado juntas. O prazer do trabalho de equipa, solidário e harmonioso. A festa dos sentidos!
As crianças passaram umas horas mais sossegadas, mas bem felizes. E nem se importaram de não concentrar as atenções dos adultos.
Todos poderão confirmar:
_ Que bela tarde!








Todos sabem, mas por graça: "Compota de Pêssegos"

Ingredientes:
1kg de pêssegos
800g de açúcar
2,5dl de água


Preparação

Descascam-se os pêssegos e cortam-se em cubos pequenos. Leva-sea água ao lume com o açúcar até formar ponto de pérola e adicionam-se os pêssegos, deixando ferver lentamente.
Vai-se retirando a espuma que aparece ao de cima do "caldo".
Quando estiver em ponto de estrada fraco_ ou quando o doce ficar brilhante_ retira-se do fogo e deixa-se arrefecer.
Conserva-se em frascos ou serve-se em tacinhas individuais como sobremesa, é um agradável doce de colher.

OTOÑO RETOÑO


Bom Apetite!

terça-feira, 6 de outubro de 2009

interrupção 2----------Vítor Oliveira Jorge

de repente o importante era a humidade
que vinha de dentro, subia de ti;
e as lombadas logo pararam todas.

o sentido tinha-se espalhado
pelo meu corpo acima,
e por ele subiam pequenas iguanas
vorazes.

nas estantes as obras
encostavam-se com malícia aos livros,
e pelo ar voavam folhas e frases
à procura de autor e biblioteca.

eu via os abismos do vermelho
em todos os pantómetros,
e foi-me presente
o espectro inteiro do magenta.

oh volúpia imensa com que os rostos
reviravam os olhos, procurando ainda,
mesmo dentro da hélice,
o eixo do sentido.

e no âmago da espiral
eu vi as iguanas subirem
em línguas de fogo
do pentecostes e do apocalipse:

e de súbito, por estranho,
estavam ambos encadernados como códices, lado a lado.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Les Plus Beaux Vers----------Edmond Harancourt

Les plus beaux vers sont ceux qu'on écrira jamais,
Fleurs de rêve dont l'âme a respiré l'arôme,
Lueurs d'un infini,sourires d'un fantôme,
Voix des plaines que l'on entend sur les sommets.


L'intraduisible espace est hanté de poêmes,
mistérieux exil, Eden, jardin sacré
oú le Péché de l'art n'a jamais pénetré,
mais que tu pourras voir quelque jour, si tu m'aimes.


Quelque soir oú l'amour fondra nos deux esprits,
en silence, dans un silence qui se pâme,
viens pencher longuement ton âme sur mon âme
pour y lire les vers que je n'ai pas écrits...

domingo, 4 de outubro de 2009

ATITUDE---------Olímpia Dória

Alegre... Eu sou alegre... Sabem todos?
Um riso em cada olhar... Outro na boca.
Que importa que censurem de mil modos
Minha atitude rutilante e louca?

Minha amargura de áurea luz se touca
Visto-a de rúbias rosas ou jasmins...
Às vezes desnudar a Dor apouca
O senso divinal de nossos fins...

Eu sou alegre... ó virgens, querubins,
Que iniciais com pejo e doce agrura
O beijo que traduz lindos festins:

Gozai tristeza_a graça da ternura...
Porque meus olhos são dois arlequins
Morrendo a rir no palco da tristura.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

de Manuel Gusmão

No crepúsculo da tarde, acende-se no alpendre daquela casa
a presença de uma mulher que espera.
Espera o eco do canto que há pouco entoou ao findar o sol.

As árvores que deitam a colcha das suas copas sobre a colina
em frente formam a câmara de ressonância.
Que foi guardando as estrofes e o seu desenho em ondas.

Fiel e inventivo, o eco esperou que chegasse ao fim
o canto. E só depois de reconstruído, todo e intacto,
o devolveu pelos ares ao encontro da fonte, que esperava

no alpendre daquela casa, que o crepúsculo da tarde acendia.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

"Tarde de Amigas (há algum tempo atrás)_Ovos Estrelados"

_Que maçada! Lá torci o salto na calçada! Depois admiram-se de as senhoras andarem na estrada, no alcatrão, desprezando os passeios e afrontando perigos!
Seria bom se a Helga estivesse despachada e saíssemos logo para o Centro Comercial. Lá encontraremos mais gente do grupo, com certeza. Se bem que já cansem as montras inacessíveis, aborreçam as partidas sem graça, sejam dispensáveis as conversas inconsequentes, e as maldosas também já enjoem.
Ir ao cinema? Não me parece que haja algum filme de jeito... Bem. Vamos ver o que a Helga pensou para entretermos a tarde...
Helga_ Olá, Cristina! Estás bem? Que vamos fazer de divertido hoje?
Cristina_ Viva, Helga! Esperava que tivesses feito o programa da saída... E de preferência bem fixe...
Helga_ P'ra dizer a verdade não me apetece sair; não vejo interesse nos programazinhos habituais. Não sei. Parece que as férias já pesam, não achas?... E se ficássemos aqui por casa?
Cristina_Para quê? Ver televisão? Ouvir música? Net? Cusquices? Mais do mesmo?!...
Helga_ Olha, e se fôssemos cozinhar?
Cristina_Trabalhar?!... Com este calor?!...
Helga_Não te assustes... É capaz de ser engraçado, pela novidade. Vamos procurar uma receita fácil no livro de cozinha da família.
Cristina_ E se sai tudo mal?
Helga_ Descansa, que eu estou acostumada com as medidas, os ingredientes, o fogão e o tempo. Vai correr tudo bem, verás!
Olha, "ovos estrelados". Este é um belo doce. Fácil de fazer, embora um pouco dispendioso... P'a fazer em situações especiais. E aposto que nunca provaste.
Cristina_ Ovos estrelados?! Isso até eu sei fazer! Olha que ciência!... Uma especialidade!... Helga_ Não são desses. Ora presta atenção e vai fazendo como eu digo. Tu é que vais confecionar a iguaria. Eu só oriento, e os louros vão ficar todos para ti. Vá lá então:
1_ Pesam-se, ou medem-se no copo medidor, 500 gramas de açúcar branco.
2_ Põe-se ao lume, com a água suficiente para dissolver bem o açúcar. Enquanto o preparado aquece vamos tratar dos ovos.
3_ Separam-se 7 claras das gemas com cuidado.
Helga, mais uma vez_ Vá, o açúcar já ferve. Batem-se as claras (sete, lembras-te?) com a batedeira elétrica, o batedor de varetas ou de espiral, ou até mesmo um garfo, levantando-as bem, até ficarem em neve, bem firmes.
4_ Vá, eu vigio o açúcar. Parece estar pronto. Repara como se vê uma pequena porção na colher. deita-se num pires cheio de água bem fria. Com os dedos, junta-se. Vês? Repara bem, faz um rebuçado. Levanto-o nos dedos e deixo-o cair no prato. Faz um som forte, quase metálico, não é? Está mesmo pronto. Em ponto de rebuçado.
Cristina_ Em ponto de rebuçado... Que engraçado!
Helga_ Deixa-te de galhofas que ainda não é hora de descansar.
Continua a bater as claras, sem parar. Quanto mais consistentes melhor.
5_ Agora deita-as todas de repente. Envolve-se tudo muito bem, com uma forte pressão da colher no fundo do tacho, não vá agarrar-se o açúcar e formar cristais que se não derretam.
Muito bem. E agora que não há açúcar agarrado bate-se muito bem, com força, até se transformar numa massa rija e brilhante, espelhada como vidro, ou melhor, porcelana.
Pronto. Com a colher vais deitando em cada pratinho uma porção, não muita, mas que fique bem redonda. OK. Assim está bem. Agora vamos aproveitar as gemas.
6_ Pesa lá 250 gramas de açúcar e com uma pinga de água põe ao lume até tomar ponto bem alto.
7_ Entretanto, junta 3 ovos completos às gemas e bata bem, mas não demasiado, até estar tudo bem envolvido e desfeito. O açúcar está bom assim. Deita-lhe os ovos e mexe até ficarem bem ligados e a mistura tiver engrossado. Cuidado! A chama não pode estar muito forte, não vão eles pegar-se ao tacho, e aparecerem farrapitos escuros de péssimo aspeto. Nós precisamos que fiquem bem sólidos. Estão bem. Agora, deixa arrefecer.
Cristina_ E agora? Não imaginava que fosse tão divertido fazer um doce!
Helga_ Como vês, de tudo se pode tirar proveito. E é bom saber fazer alguns manjares simples e de grande efeito, para alguma ocasião especial! Para além dos comeres habituais. Nunca se sabe!
Como os ovos já estão frios, vamos completar a decoração dos pratinhos.
8_ Com duas colheres pequenas ajeitam-se os ovos, assim numa bola um pouco achatada do tamanho da gema de um ovo, e coloca-se esta no centro do doce de claras.
Cristina_ Ai! Daí vem o nome! Parece mesmo um ovo estrelado!
Helga_ Exatamente. Vamos comer um cada uma, e levas alguns para os teus pais, para lhes mostrares as novas habilidades.
Cristina_ É verdade. A tarde passou num instante. Foi diferente. E útil. E divertida! Vamos repetir a façanha e experimentar outras receitas?
Helga_ Não achas que foi fácil? Se a sobremesa fosse mais trabalhosa também te aborrecias. Aconselho-te é, das próximas vezes que a fizeres, a roubar um pouco na quantidade do açúcar, para ser apenas agradável e não fazer mal à saúde nem engordar.
Cristina_ Está de truz!!!
Helga_ Vamos lá então repetir os ingredientes e não te esqueças de os apontar:
_500 gramas de açúcar para as claras.
_+250 gramas de açúcar para as gemas.
_uma pouca de água, para o açúcar. qb
_7 ovos_separando as gemas das claras
_+3 ovos completos

Cristina_ Quando houver visitas lá em casa já posso fazer um brilharete!...
Helga_ Bom apetite, então!

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Blogue----------------Fernando Pinto do Amaral

Mantivera no fim da adolescência
aquilo a que chamava simplesmente
o seu diário íntimo:
páginas manuscritas onde ardiam
rastilhos de mil sonhos que rasgavam
as mordaças da angústia social,
a timidez tão própria da idade.

Nessa caligrafia cuja cor
fora ainda a do sangue
colheu a energia necessária
para atravessar como um sonâmbulo
o ordálio daquela juventude,
o seu incandescente calendário
de amizades vorazes, tão velozes
como os amores que julgava eternos
e outras feridas mal cauterizadas.

Hoje quase não volta a essas páginas:
estamos no século XXI
e em vez do diário de outros tempos
mantém agora um blogue
onde todos os dias extravasa
recados, atitudes, confissões,
coisas no fundo tão inofensivas
como o fogo que outrora lhe acendia
as frases lancinantes
_embora hoje em dia quando escreve
tenha por um momento a ilusão
de que as suas palavras continuam
a propagar ainda o mesmo vírus,
e a alimentar, quem sabe, os mesmos
sonhos
sempre que alguém desconhecido as ler
como quem só assim então escutasse
um segredo na noite do mundo.

Mas, apesar de todo o entusiasmo
que o mantém acordado por noites sem fim,
ele adivinha que também virá
um dia a abandonar sem saber como
o seu actual vício solitário
e dentro de alguns anos, ao reler
as frases arquivadas no computador,
talvez tudo isso lhe pareça então
fruto de gestos tão adolescentes
como os que antigamente preenchiam
esses cadernos amarelecidos
e hoje sepultados para sempre
em esquecidas gavetas de outro século.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

SETEMBRO---------------Afonso Lopes Vieira

Que beleza de gesto
o das árvores todas, ofertando
tudo o que têm!

Seu coração magnânimo e modesto,
tão obscuro e tão bom, tudo está dando
com sorrisos de noiva e carinhos de mãe.

Setembro, com seu carinho,
abre o regaço cheio de produtos:
dá-nos a força rubra e ardente do vinho,
e a graça luminosa,
essa luz saborosa
que perfuma e que aloira a polpa clara aos frutos.

Na postura das coisas se descobre
este esforço gigante e humilde: a criação...

Uma cepa de vinho é uma mãozinha pobre,
consumida e torcida de aflição,
que sofreu e penou, chorou, obscura,
passou dias de luto e de amargura
e se fartou de chorar,
para poder criar,
contra a sanha da geada e do escalracho,
o seu filho jovial e perfumado_ o cacho!...

E aquela macieira adolescente
já tem essa risonha sisudez,
deliciosa!
duma menina e moça que pressente
que a vida é feita da alegria dolorosa,
vitoriosa e ansiosa,
de viver...

Mas já depois que os frutos são colhidos,
as árvores, as santas indulgentes,
hão-de sentir dos corpos doloridos,
por ilusão confusa dos sentidos,
os frutos ainda pendentes.

Vou caminhando, nesta luz do Outono,
_o ar é de oiro, a terra é toda de oiro
e a luz redoira esse tesoiro,_
por um pomar que foi todo ceifado,
e a afanosa mão do dono
deixou deserto de aquela outra flor
que é o fruto redondo e perfumado,
gerado com mimo e dor.

Mas as árvores, as leais amigas,
com as suas rugosas mãos antigas,
alongam sempre na largueza do ar
seus grandes gestos de dar.

E (dir-se-ia) pois que ainda estendem
suas mãos generosas, maternais,
de onde os frutos agora já não pendem,
_ têm pena de não dar mais!

PSICHIS-----------Rosa Garcia Costa

Libre y perfecta,
Iluminada en su sonrisa clara,
Con los cabellos llenos de rocio,
Se levanta en el alba.


Sus brazos sienten la fruicion del vuelo,
Sus pies emergen de la hierva tierna;
Le dá la luz espiritual de arriba
Y la fragrancia de la madre Tierra.


Limpia; serena, original, perfecta,
Será mujer ó estatua.
Visibles tiene, en las espaldas nobles,
Rudimentos de alas.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

MANIFESTO

Assumo-me, definitivamente, como sou. Inteira. Contraditória. Afectuosa. Possessiva. Insegura. Protectora, maternal. Humilde e, ao mesmo tempo, com um imenso orgulho que me impele, no arrepio da vida... Introvertida, e com uma necessidade absoluta e patética de me expor, em situações em que mais me valeria deitar-me num oco e tapar-me com dignidade. Pessimista militante, trabalhando afanosamente um optimismo, irrealista com certeza, e portanto tão difícil de alcançar... Sentimental e emotiva, testando os limites, beirando o abismo, reagindo atabalhoadamente aos desapontamentos que advêm da minha relação com os outros... Sou excessiva. Dou-me muito, mas sempre a correspondência fica aquém das minhas expectativas... Embora pouca coisa baste para me alegrar e fazer sentir compensada. Não me prometam o que não tencionam ou podem dar. Jamais esquecerei a promessa nem a falha. Se antes a interacção insatisfatória dos relacionamentos me levava a esconder-me num canto e chorar, hoje revisto-me de uma emoção eriçada de espinhos, reclamo da injustiça, ou, se percebo que nada mudará, e nunca me darão razão ou melhorarão o desempenho, afasto-me, a distanciação que aprendi para me defender e que também é dolorosa, pois implica desinvestimento afectivo, que me é antinatural. Egocêntrica, com certeza. Aceito a definição. E no entanto sou capaz de anular-me durante muito tempo, tentando formatar-me e ajustar-me em moldes supostamente naturais. Mas não acreditem que o farei indefinidamente... Um belo dia, as asas teimam em crescer, em romper ligaduras, amarras e pele, se vejo que o sacrifício é inútil, ou dura demais, sem esperança à vista, salto fora da canoa furada, tentando sobreviver... Mas como sou fatalista
e agarrada aos meus fantasmas, facilmente poderei retroceder, retomar um ciclo soturno, por crer que devo, ou que o mereço.
Desajeitada e pouco prática aceito experimentar algo novo, durante algum tempo, até desistir,
por perceber uma tremenda falta de jeito. Cada um é para o que nasce, e ninguém é melhor que ninguém.
Extravagante. Entusiasta. Generosa. Com um imenso prazer de dar. Pouco reivindicativa, mas exigente. Hipersensível. Adorando fazer coisas pelos outros. Gosto de reconhecimento, embora não seja imprescindível. Influenciável, nem sempre para meu bem. Sensível. Desprotegida, mas sabendo responder a "terapias de choque". Extremamente autocrítica, procuro infatigavelmente os meus erros, e tento entender os outros. Quem sou eu para julgar ou querer similitudes nos outros?
Busco agora cultivar uma auto-estima que sempre foi deficitária... Penso estar a progredir nesse sentido.
Até, aventurando-me pela geografia do corpo, vejo-me sem artifícios, obesa, porque como as emoções; diabética, sou viciada em doces. Aprendi desde que nasci que alimentos agradáveis equivalem a afectos, e, na ausência destes, não resisto. O que me deixa extremamente culpada, pois sei que estou a cometer um suicídio lento. Que a minha Fé não desculpa. Os sentimentos de culpa são recorrentes e habituais a propósito de tudo e de nada. Conheço-os de sempre.
Voltando à minha aparência física: Não sou bonita que espante, nem feia que meta medo. Hoje estou contente com o que sou. Cada imperfeição, cada ruga, cada cicatriz é o resultado de um sentimento, de um acontecimento tatuado em mim, e aceito-os, a uns e outros prazerosamente.
Tenho , por vezes, pena de,nos meus verdes anos, quando era magra, elegante, e jovem, sobretudo jovem, e os meus olhos eram meigos e aveludados, não me ter dado conta, encerrada na minha timidez imensa, na minha crónica falta de amor-próprio. Se alguém mo referia, encolhia-me envergonhada e incrédula. Podia ser desconfiada na mesma, e devia, mas gostava de ter sido mais confiante em mim, de ter sabido valorizar-me.
O que interessa agora é que me estimo. Vou pensar em mim. No que me agrada . Tenho de ser importante para mim mesma. Afinal, vou reconhecer sem modéstia, que sou a fulana mais "gente boa" que eu conheço. Com perdão dos bons amigos e das pessoas confiáveis e éticas com quem me relaciono. E são muitas, felizmente.
Uma longa vida de passividade, e descubro-me, de repente, corajosa. Não temerária ou imprudente, mas vou atrás do que me é importante, da justiça, dos meus valores. Amando as palavras, gostando de verbalizar, escrevendo, oralmente bloqueio, ou enrolo-me toda, ou vejo-me enredada em mal entendidos que não quis, e querendo desfazê-los, mais me enterro. Tenho de reconhecer, talvez, por tanto me pôr a jeito, que não devo ser muito inteligente. E dou-me bem conta das pequenas traições, de pequenas ou grandes inconsiderações, de quando insultam a minha inteligência com pequenas mentiras, omissões ou inconfidências que traem descaradamente a minha confiança, que fica abalada, garanto. E, no entanto, persisto.

domingo, 30 de agosto de 2009

CONTAS PARA UM ROSÁRIO NEGRO-2- BERNARDO SANTARENO

As minhas mãos e as tuas,
ansiosas de amor,
venceram a distância:
Fizeram-se nuvens livres
com longos dedos de brisa,
cruzaram oceanos
e... quase chegaram,
quase se tiveram!...


Uma lágrima tua,
uma só,
as separou.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

"A REVOLTA DOS ANÕES"

No meu reino de sonhos e magia vejo-me a braços com uma situação delicada, difícil, que urge controlar. Os anões amotinaram-se e transformaram os meus dias, e noites, sobretudo as noites, em batalhas perdidas pela positividade. O que me deixa num trilema: Castigo-os e despeço-os por conduta imprópria e desleal, o que me deixará desprevenida, claro; ignoro-os, na esperança de que se cansem e deixem de atormentar-me; ou mimo-os, na suposição optimista de que me tratem bem?Todas estas pseudo soluções terão custos e consequências futuras... Se os "despedir", que faço sem "anões"? Sobreviverei à hecatombe? Se os ignorar, podem piorar a situação por falta de cuidados... Se lhes der muita atenção, podem descontrolar-se e fragilizar-me, o que "já" me não dará jeito. Cansei-me de vogar ao sabor das circunstâncias, propícias ou adversas... Tenho de ser EU e tomar de vez os comandos da minha vida e de mim mesma. Quero "ser","fazer", "criar" , Viver. Quem há-de mandar em mim? Os Anões? Ora façam-me o favor!... Já não bastavam os pensamentos desalinhados..., as emoções insubmissas... Ainda tinham que chegar os anões rebeldes e vingativos para tumultuar o espaço...! Imaginem se posso dar confiança a "anões" ranhosos!
Nova gerência!

terça-feira, 18 de agosto de 2009

ALMA, SONHO, POESIA----------Fernanda de Castro

Entrei na vida
com armas de vencida:
Alma, Sonho, Poesia.
Quando eu cantava
o mundo ria
mas nada me importava:
cantava.

Depois, um dia,
o mundo atirou pedras ao meu canto
e a minha alma rasgou-se.
Que seria?
Medo, espanto,
revolta ou simplesmente dor?
Fosse o que fosse,
o orgulho foi maior.

Com dez punhais nas unhas afiadas
e nos olhos azuis duas espadas,
eu nunca mais seria, nunca mais,
a que entrara na vida
com armas de vencida.
Agora o meu querer era mais fundo:
dum lado, eu, do outro, o mundo.
E começou a luta desigual
do tigre e da gazela.

A vencida foi ela.

Mas que louros colheu dessa vitória
o mundo cego e bruto?
O sangue dos Poetas? Triste glória...
Cinza dos sonhos mortos? Magro fruto...

Ah, não, punhais e espadas!
Eu só quero cantar! Não quero ossadas,
nem, sob os pés,um chão de campas rasas.
Eu só quero cantar! Só quero as minhas asas
e a minha melodia:
Alma, Sonho, Poesia.
Alma, Sonho, Poesia.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

O TEJO CORRE NO TEJO------Alexandre O'Neill

Tu que passas por mim tão indiferente,
no teu correr vazio de sentido,
na memória que sobes lentamente,
do mar para a nascente,
és o curso do tempo já vivido.

Não,Tejo,
não és tu que em mim te vês,
_sou eu que em ti me vejo!

Por isso, à tua beira se demora
aquele que a saudade ainda trespassa,
repetindo a lição, que não decora,
de ser, aqui e agora,
só um homem a olhar para o que passa.

Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
_sou eu que em ti me vejo!

Um voo desferido é uma gaivota,
não é o voo da imaginação;
gritos não são agoiros, são a lota...
Vá, não faças batota,
deixa ficar as coisas onde estão...

Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
_sou eu que em ti me vejo!

domingo, 14 de junho de 2009

SEM SAÍDA------------Fernando Pinto do Amaral

Da tua sombra nasce a minha luz
do teu puro silêncio a minha fala
e ainda é teu o olhar que me seduz
no presságio do sono que me embala

Queria poder amar-te sem motivo
já sem corpo nem alma nem passado
quando só tu me provas que estou vivo
no teu sorriso mais que desesperado

Vem ter comigo, vem, enquanto a vida
nos abandona à flor do seu segredo:
ambos sabemos que não há saída

fora do nosso amor_ ainda é cedo
e a noite é uma criança distraída
até ficarmos sós: não tenhas medo

SEDE-------------Fernando Pinto do Amaral

Aproxima-se o verão_ tens de saber
decifrar essa música,
iluminar ainda com o teu sangue
a raiz mais secreta, a madrugada
onde nasce a alegria. Não te ocultes
no solitário espelho das palavras
ou nesse labirinto onde inventaste
mil razões sem razão.


Aprende a respirar.
É uma velha ciência, como sabes,
e há-de recordar-te
a pura matemática da pele
quando o verão despertar mais uma vez
à flor da boca a tua sede.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

MA SOEUR LA PLUIE-- Charles Van Lerberghé

Ma soeur la Pluie,
La belle e tiède pluie d'été,
Doucement vole, doucement fuit,
A travers les airs mouillés.

Tout son collier de blanches perles
Dans le ciel bleu s'est délié.
Chantez les merles,
Dansez les pies!
Parmi les branches qu'elle plie,
Dansez les fleurs, chantez les nids;
Tout ce qui vient du ciel est béni.

De ma bouche elle approche
Ses lèvres humides de fraises des bois,
Rit, et me touche,
Partout à la fois,
De ses milliers de petits doigts.

Sur des tapis de fleurs sonores,
De l'aurore jusqu'au soir
Et du soir jusqu'à l'aurore,
Elle pleut et pleut encore,
Autant qu'elle peut pleuvoir.

Puis vient le soleil qui essuie.
De ses cheveux d'or,
Les pieds de la Pluie.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

LA BELLE ÉPOQUE-------------------1966

Se eu fosse uma donzela delicada
De alvos punhos de renda
E lindos bandós
Se vivesse numa corte de sonho
Num palácio de encantamento
As noites para mim seriam dias
E ao luar escutaria os mil segredos
Que os regatos sussurram e insinuam


Se eu fosse uma bela dama
De caracóis de oiro
Olhos cor de esperança
E lábios de coral
Se tangesse a harpa angelical
Se entoasse lindas árias
Co'a minha voz de cristal
nos longos serões seria admirada
E as estrelas longínquas
Quedar-se-iam enleadas


Se eu fosse uma condessa linda
De folhos engomados jóias cintilantes
sapatinhos de cetim
Brilharia nos salões
Admirada adulada acarinhada
Estonteante e caprichosa
Destroçaria corações
e as damas invejosas
Por trás dos leques de plumas
Entre risinhos nervosos
Morder-se-iam despeitadas


Ao ecoar uma valsa
Deslizaria contente
Pelo braço do meu par
(Um belo príncipe encantado
Que comigo quer casar)
No ardor "desse" momento
Na magia desse olhar
Esqueceria de bom grado
A minha efémera glória
De beleza e sedução


Mas cansada de lisonjas
Falso brilho e ostentação
Entre suspiros saudosos
No leito alto e delicado
Fitando os olhos extáticos
No fulgurante dossel
Expiraria só bela e pálida
Tísica entediada melancólica
(Apenas a sombra de um remorso
Da minha cândida perfídia
Viria perturbar aquela paz)

MÃE----------------------1967(em plena guerra colonial)

Quisera dizer-te
Em palavras de encanto
O que sinto por ti.
Quisera ter voz
E cantar o carinho
Que te dedico, Mãe...
Mas, sabes, não tenho coragem
Para exprimir certas coisas!)
Não sentes o turbilhão
Em que o mundo se revolve?
As vagas de dor e angústia
Que fazem chorar outras mães?!...
E os meninos sem lar,
Sem uma face radiosa e terna
P'ra beijar
Como a tua, Mãe!?...
Não posso dizer-te
Que te quero muito,
Que em meu peito vive
Uma enorme gratidão
Porque a guerra (a Guerra, Mãe!)
Faz murchar
As flores da Inocência,
Calar as vozes da Consciência,
E nascer dentro de nós
Mensagens mais vivas e prementes
Do que essa que queria confiar-te, Mãe,
(Até porque já a sabes...)
Mãe,
Evoca comigo as 1000000 crianças tristes
Sem abrigo.
As mães que choram os filhos
que fazem guerra pela Paz!

Mãe
(Estás a ouvir, Mãe?)
O beijo que queria dar-te
Morreu agora num soluço
de cansaço e frustração.
Amo-te, Mãe!
Mas, por favor, com guerra, Não!

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Soneto Científico a Fingir---Ana Luísa Amaral

Dar o mote ao amor. Glosar o tema
tantas vezes que assuste o pensamento.
Se for antigo, seja. Mas é belo
e como a arte: nem útil nem moral.

Que me interessa que seja por soneto
em vez de verso ou linha desvastada?
O soneto é antigo? pois que seja:
também o mundo é e ainda existe.

Só não vejo vantagens pela rima.
Dir-me-ão que é limite: deixa ser.
Se me dobro demais por ser mulher
(esta rimou, mas foi só por acaso)

Se me dobro demais, dizia eu,
não consigo falar-me como devo,
ou seja, na mentira que é o verso,
ou seja, na mentira do que mostro.

E se é soneto coxo, não faz mal.
E se não tem tercetos, paciência:
dar o mote ao amor, glosar o tema,
e depois desviar. Isso é ciência!

terça-feira, 2 de junho de 2009

PARA TI, JOVEM-----------------1967

Detém-te, Mocidade!
Escuta a melodiosa sinfonia
Que se liberta do universo
Que te rodeia.
Ouve,
Sufoca a tua Juventude
Ardente.
Apaga a interrogação
Que te cresce no peito!
O Mundo é teu...
Alegra-o com as tuas gargalhadas...!
Detém-te e escuta:
Ouvirás o marulhar das vagas
E o grito selvagem da gaivota...
A brisa abraçada aos coqueiros
A murmurar segredos
Na mesma linguagem que tu falas...
Enterra os pés na areia.
Beija as ondas do mar.
Volteia os teus sonhos
Loucos
Nas trevas do mundo
Absorto.
Sentirás a alma libertar-se.
Despertarás... E sabendo
Que te irmanas
Aos seres que vibram
Contigo
Hás-de rir, feliz!
Sim, Jovem:
Segue confiante a tua estrada.
Escuta a Vida
E espera...
A Paz mora lá...

CONSELHO-------------Miguel Torga

Salta, discretamente, a página do amor
No Livro de Horas.
Não leias mal o que já leste bem.
Emocionado, choras
A cada passo,
E tornas baço
O brilho que ela tem.

Deixa o texto arquivado na lembrança.
Passa adiante e cobre-o de pudor.
No jardim resta ainda tanta flor
Que podes desfolhar
Sem lágrimas na voz!...
Quem soube ter, sabe renunciar...
Há laudas de silêncio em todos nós.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

VOZ ACTIVA-----------------------Miguel Torga

Canta, poeta, canta!
Violenta o silêncio conformado.
Cega com outra luz a luz do dia.
Desassossega o mundo sossegado.
Ensina a cada alma a sua rebeldia.

ESPERANÇA--------------Miguel Torga

Canto.
Mas o meu canto é triste.
Não sou capaz de nenhum outro, agora.
Uma ilusão,
Tolhida na amplidão
Que lhe sonhei...
Felizmente que sei
Cantar sem pressa.
Que sei recomeçar...
Que sei que há uma promessa
No acto de cantar...

domingo, 31 de maio de 2009

LETREIRO------------------------Miguel Torga

Porque não sei mentir,
Não vos engano:
Nasci subversivo.
A começar por mim_ meu principal motivo
De insatisfação_,
Diante de qualquer adoração,
Ajuízo.
Não me sei conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso.

LIMBO------------------Miguel Torga

É o pranto
Que ninguém chora
Que eu agora
Canto.

E aquele amor constante,
Desenganado,
Que nunca teve amante
Nem amado.

E o gesto cordial que se não fez,
Nem faz,
E fica por detrás
Da timidez.

E o imortal poema
Por acontecer,
Irmão do vento, seu rival sem asas:
Lume a fugir das brasas
Antes de a lenha arder.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

INTIMIDADE-----------------------1968

Amo-te!
Dizê-lo quebra o encanto
Dos ecos silenciosos
Que o sentimento não esconde?
Que importa?!...
Se o gritam os meus dedos
Viajando ansiosos
Pelas linhas do teu rosto!...
Se o lês claro em meus olhos
Implorando mais ternura
Em luar negro de esperança
Vazando ternura em ti...
Amo-te! Senti-lo nos teus lábios
É íntimo
Veemente
Convincente
Então deixa-me ser em palavras
A unidade que vivemos
No imenso silêncio prenhe de sonhos
Ilusões tão belas
Sorrindo em nós.
Amo-te.
Não protestes... Não, tens de sabê-lo.
Que importa?!
Se a vida é uma folha morta
Vogando em ondas de amor!...

DIVAGANDO...--------------------------1972

O segredo
está no estar
em cada minuto
da vida
como se no instante
seguinte
o mundo fosse acabar


Como se nada mais
houvesse
capaz de nos arrancar
à importância
do ser e do estar
permanecer e ficar

Só assim a vida é Vida
e algo se pode achar
construir ou arrasar
Ou então viver somente
ao impulso do presente.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Theme For Song-----"Our moment to love"--1966

Come just at me, my darling...
Remember, I love you so much...
The sun is setting
And the sky is red:
This is our moment to love.
Drive away the grey clouds
From your heart.
Always remember:
I belong to you and you belong to me
Forever.
Let's walk among the twinkling stars.
Let's hope our pink dreams
Will become true.
Toguether we'll go to the happyness...
Kiss me sweet
And forget the world...
At that very moment
Only you and me
And our love...

DESESPERO---------------------1966

Se eu esmorecer
De fadiga
Abandona-me no limiar da vida...
Estende abismos e penhascos
Para além dos meus olhos
Que se alongam
Chorosos na distância.
Estou cansada
Guia-me na desolação
Do nada que penetra em mim,
Mas conduz-me pelos atalhos
Mais penosos...
Tenho sede,
Dá-me fel...
Tenho fome,
Dá-me escolhos...
Afasta de mim o desespero
Da busca do não-sei-quê
Sabendo, por de mais, o que procuro...
Quero gritar ao mundo
E a Deus
Que o verme que vês
Revolver-se na lama
a teus pés
Sou Eu...!
Humilhada,
Elevando-me na desgraça...
Desprezada,
Orgulhosa da minha miséria...
Despojada,
Avara do meu nada...

AURORA-------------------Adolfo Casais Monteiro

A poesia não é voz_é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:

voo sem pássaro dentro.

DE UMA POESIA...-------------Jorge de Sena

De uma poesia esperam
tanta cousa!
E logo desesperam
senão ousa.

Mas a poesia nada tem com isso.
Ela não diz nem faz,
nem está sequer ao teu, ao meu serviço.
Serão visões de paz,
aquilo que ela traz:
mas quanta guerra para falar nisso!

Uma só coisa ela será, se for
(e espera ou desespera
conforme o meu, o teu, o nosso amor):
Inverno ou Primavera,
e sempre uma outra dor.

SEMANA AFRICANA--------------------2009

Depois de ter sonhado um ano inteiro com as actividades e entretenimentos proporcionados pela UTIS nesta semana tão especial, aqui está ela... E eu, carregando uma "juventude acumulada" com excesso de IVA, mazelas e maleitas, sem poder aproveitar... É de sentir uma certa raiva! Mas para quê? A PDI, ou DNA (data de nascimento antiga), cobram o seu tributo... Além disso, também não havia muito a esperar de quem nasceu com 1,700kg, de tempo, e escolheu bem. Adiante.
Hoje estive lá, no Teatro Sá da Bandeira em Santarém, no meu mester de contadora de histórias... de África, claro. A meninos do jardim escola. Foram momentos muito bem passados: com uma pequena lenda expliquei, de uma forma fabulística, isto é, simples, divertida e didáctica, porque é que as galinhas esgaravatam a terra, e a razão das lebres terem a cauda curta, e também contei a história de Mariam e a Papaia , muito ternurenta e combatendo naqueles espíritos pequeninos o egoísmo, fomentando a ideia de partilha e de afectos familiares. Amanhã contarei a crianças de 7, 8 anos a estória de "O Leão Vegetariano", engraçadíssima, "A Maldade da Hiena", e" A estória de Madevo", de Paula Ferraz. Esta desvenda, de forma hilariante, os malefícios da vaidade e da gabarolice. São momentos muito bons, em que me divirto tanto ou mais que o público pequenino. À tarde, se houver assistência suficiente, mais do que uma pessoa interessada, orientarei um workshop de construção de máscaras africanas, tradicionais, e cabeças vestíveis de animais. Depois haverá projecção de dvds e colóquio, gastronomia africana, música... Sempre haverá música e eu regressarei a casa sem assistir aos espectáculos, sem participar na animação... Sim, que ouvir aquela música contagiante sem conseguir dançar é uma tortura a que não me apetece submeter-me. No Sábado faremos, como de costume, uma tarde de poesia africana, com os meus amigos escritores dos Cadernos Moçambicanos--Manguana (Manhã). A seguir, as senhoras batucadeiras da Cova da Moura deliciar-nos-ão com a exibição do tradicional batuque de Cabo Verde, contando "cosas de mudjer". Que ferro não ser capaz de saltar para o meio delas, como de outras vezes, e batucar, e sacudir, e encher-me de júbilo e frenesim!
Mas para o ano vingo-me! Se Deus quiser hei-de ter vida e saúde e disposição para tirar a barriga de misérias! Quem quer juntar-se a nós? Há muitas mais actividades e focos de interesse!...

segunda-feira, 25 de maio de 2009

ALUCINAÇÃO---------------------1964

Esta noite...
Senti na minha fronte
Escaldante
O beijo gelado
Da morte...


Percebi
Vultos alados... roçarem as suas asas
Brancas
No meu corpo febril
Vi figuras hirtas
Rostos etéreos... seráficos...
Translúcidos
Esqueletos tétricos irónicos
Que dançando um bailado
Macabro
Me arrastavam
Para a quietude
Doce e calma
De uma tumba...

DEMÊNCIA-------------------1964

Sacodem-me o corpo
Frémitos de loucura...
Avermelham-se as faces
No ardor da febre.
Uma sombra
Patética oculta
E vela um clarão vivo,
Sinistro,
De demência...


E o terrível,
Fantasmagórico pesadelo
Volta...
Voltam de novo, com ele,
Mundos disformes,
Difusos,
Para me arrastar...
Para me obrigarem a despenhar
No vácuo do esquecimento...
Gritos pungentes,
Vibrantes,
Ecoam no meu cérebro cansado
E fazem vibrar os meus nervos
Lassos, como hastes tensas de um diapasão...


E sobrevem então
O terror!
O terror indeciso
De algo indefinido
E vago... Do nada...
O medo atroz
De enlouquecer!
Como se não estivesse
Quase louca...


Eu, pobre farrapo humano
Revolto-me, na minha mesquinhez...,
E odeio aqueles
Que de mim têm compaixão...!
Afundo-me, cada vez mais,
no Abismo de trevas,
E nada posso fazer
Para as dissipar...
Para regressar à luz
...E à vida...

BALADA DA AUSÊNCIA---------------1967

Quando regressares
Será tarde de mais
Não terei nos lábios
O suave encanto
Dos beijos perdidos
O brilho da ausência
Deixará vazios os olhos doridos
De não te encontrar
Quando voltares
E a ternura te trouxer
Não terão teus braços
As carícias de sonho
Que ansiei
A ilusão e a saudade
Morrerão dentro de nós


Mas vem Amor!
Vem!
Traz no teu sorriso
O jeito terno e triste
da minha recordação
Enche as mãos de quimeras
E enfeita os meus cabelos
Com um toucado de estrelas e ideais
Sem quebrar o silêncio
Manso e ledo
Prende aos dedos mornos
O fio da vida
Deixa pulsar junto ao teu
Meu coração.

sábado, 23 de maio de 2009

VIDA----------------------------------1966

Vida
É ter-te, amor,
Sempre ao meu lado...
É amar-te assim,
Perdidamente,
E dizer-to baixinho,
Numa prece...
Prender ao meu
O teu olhar.
Olvidar a angústia.
Crer no bem...
Vida é fazer meus
Esses teus braços
E erguê-los ao céu
Em muda súplica...
Vida é o delírio
Que me aquece.
É o sonho fugaz
Que me enlouquece...
É segurar a tua mão
Na minha,
Docemente,
Reclinar a fronte
No teu peito
E expirar lentamente...

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Quase Natal----------------------------2005

Era dia um de Outubro. Num ciber-café aconchegado dedicado também à literatura e até a literatices. Foi um acontecimento animado. Amigos bons e recentes, vindos de longe... E poesia. Palmas. Emoção. Contentamento. Por estarmos juntos, por a nossa arte ser tão bem acolhida.
Já tinha havido outros encontros semelhantes. No último antes desse, na Quinta do Conde, um colóquio sobre migrações, Carlos Gil, o meu irmão, escritor, foi muito aplaudido pela exposição das suas emoções, pela declaração da sua imensa saudade de Moçambique, dos sonhos gorados, mas ultrapassados pelas vivências ricas de liberdade e partilha, dos sabores, dos cheiros, das paisagens a perder de vista. E eu, que sem me dar conta, aproveitando a deixa das migrações, falei de mim, das viagens que faço por dentro, das raízes que não sei cortar e dissemino quase a esmo, fugi ao tema inadvertidamente. Porém, tendo-me redimido lendo no fim da minha intervenção o meu poema "Batuque", recebi felicitações, e um abraço da escritora Felícia Costa, Vereadora da Cultura de Sesimbra.
Ambos fomos brindados pelas lágrimas comovidas e os abraços da doce Olga, colega de letras, uma africana lindíssima, que disse ter encontrado dois irmãos.
Conto isto para justificar o meu engano, a minha emoção.
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Quando demos por terminada a sessão, o Delmar, outro poeta e um bom amigo, aproximou-se de mim, abriu-me a mão direita e nela depositou algo pequeno, duro e liso, agradável ao tacto. Cerrando-me os dedos em volta da pequena escultua de madeira rija recomendou: _Guarde. Foi um amigo meu, escultor maconde, que lha mandou, e outra igual para o Gil. PORQUE VOCÊS SÃO IRMÃOS: (O destaque é meu): _Não os conhece, mas tenho-lhe falado de vós.
É indiscritível em palavras tão grande emoção.
Já tarde da noite, na minha cama, com a cabecinha de pau preto fechada na mão, não conseguia adormecer. As lágrimas de felicidade inundavam-me os olhos e rolavam-me pela face. Agradeci a Deus, vezes sem conta, a alegria de ter ganho tão bons amigos, e dos meus sentimentos encontrarem nos outros ecos tão calorosos.
Tempos depois encontrei o meu irmão que me contou que o escultor amigo do Delmar tinha ligado, e pedira para lhe providenciar um espaço e a oportunidade de mostrar os seus trabalhos.
Não me interessei por outros desenvolvimentos do assunto.
Isto é a Vida Real. É normal.A decepção é minha. Mea Culpa. Eu é que sou uma sonhadora.
Não. Não foi Natal. Era Outono.As folhas caducas amarelecidas já tombavam...
A desilusão espreita sempre a realidade.
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É por isso que engordo. Como as emoções, e se havia de digerir as boas e doces, que não necessitam de aditivo, por muito positivas que elas cheguem, deixam sempre um travo amargo,um rasto de desapontamento. Sou demasiado exigente, eu sei... Mas se me dou e abro as mãos, credulamente espero encontrar reciprocidade. Estou deslocada por certo, serei sempre inadaptada, sem conseguir ser feliz.

DOCE MELODIA---------------------------1968

Vem!
De manso de manso
P'la noite cerrada
Vem!
Rolando o teu sonho
Na minha balada
Vem!
Trazendo em teus braços
O calor e a vida
Vem!
Em teus lábios o ardor
De rubra chama fulgente
Vem!! Chorando chorando
Na noite abafada
Espero
Por ti meu amor
Sem ti sem ninguém
Minha alma cativa
É angústia e é dor
sem ti meu amor
A vida é vazia
É triste também.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

"Era uma vez..."-----------------------------1969

Um búzio
Que cabe na palma da mão
Lustroso pintado
Rolado encerado
Fazia um vistão
Estava ali caído
Na areia branca
A bronzear ao sol
A dormitar talvez... não; a sonhar...
E o arfar do sonho
Era o bramir do mar...
Uma voz longínqua a embalar...
Mansinho... Sem ralhar...
(Tão enganoso é o mar!)
E o búzio a sonhar...
Uma vela panda a despontar...
Um grito de coragem a alvejar...
O velejador encoberto
Afronta o mar.
Animoso. Aventureiro!
É o Povo Marinheiro
Que veio aqui ancorar!
E Moçambique cresceu
A ouvir o amansar
Da terra morena
Por gente valente
De alma grande e quente
E o rugido do mar
Forte ou dolente
Como a voz do búzio
Que estava a sonhar...
É a alma do branco
Marinheira e audaz
E o coração do negro
Franco e pertinaz.

POEMA DO DESASSOSSEGO-----Contradições

Se penso distanciar-me,
já te cerco.

Se quero silenciar, digo o que sinto,
as palavras em golfadas consentidas.

Se o meu senso me dita dar-te espaço,
já o meu medo e anseio te sufocam.

Se o pudor me manda preservar-me,
logo a aflição me leva a procurar-te.

Desorientas-me,desorganizas-me, desconcertas-me
e conduzes-me
da alegria ingente à tristeza mais funda.

Meu doce amor, sonho impossível,
razão do meu viver desenganado
de mulher, só e carente,
partindo à míngua de afagos.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

VIÇO----------------------------1975

Pingos de verde
Em mataborrão encardido
Pinceladas de luz
Cor e alegria
Na sombria noite
De Inverno
É a terra abrindo-se
Em harmonia
No clímax da longa gestação
Reverdescendo
É o alucinante girar
Dos meus frustrados sonhos
Como fogo de artifício
Explodindo dentro de mim
É o Amor
É... Primavera.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Erótica----------------------------------1979

Crucifica-me na erva
E dá-me vida nova
Num abraço...
Vem amar junto às oliveiras
No cheiro bom a húmus
E a terra arada.
Quero sentir sob a pele
Torrões a esboroar-se
E sobre mim desmoronar-se o mundo:
Tu!
Os teus olhos por céu.
Tuas carícias- frescura.
O teu fogo- ardor.
Minha solidão- perdida.
Minha alegria- reencontrada.
Regressemos às origens.
Reinventemos o amor.

sábado, 16 de maio de 2009

(IN)COMPATIBILIDADES----------------------1978

Se opuseres
Um dique de silêncio
Em tuas veias azuis
Ficarei presa em redes
D'água
E a debater-me em vão...
Mas, se a barreira
For de espanto,
O meu signo de cristal
Rumará contra a corrente
Ao encontro do teu fundo,
De pupilas acesas
E medos calados e obscuros,
Para nele se fundir
E na inquietude
Repousar

sexta-feira, 15 de maio de 2009

FADO FALADO----------João Villaret

Fado triste. Fado negro das vielas
Onde a noite quando passa
Leva mais tempo a passar.
Ouve-se a voz, voz inspirada
De uma raça
Que o mundo em fora nos levou
P'lo azul do mar.
Se o Fado se canta e chora
Também se pode falar.

Uma história bem singela:
Bairro antigo, uma viela,
Um marinheiro gingão,
E a Emília Cigarreira,
Qu'inda tinha mais virtude
Que a própria Rosa Maria
Em dias de procissão
Da Senhora da Saúde.

Os beijos que ele lhe dava
Trazia-os ele de longe,
Trazia-os ele do mar.
Eram bravios e salgados.
E ao regressar à tardinha
O mulherio tagarela
De todo o bairro de Alfama
Cochichava em segredinhos
Que os sapatos dele e dela
Dormiam muito juntinhos
Debaixo da mesma cama.

Pela janela da Emília entrava a Lua...
E a guitarra, à esquina de uma rua,
Gemia dolente a soluçar...
E lá em casa... Mãos amorosas na guitarra
Que desgarra dor bizarra.
Mãos frementes de desejo.
Impacientes como um beijo.
Mãos de Fado, de pecado,
A guitarra a afagar
Como um corpo de mulher,
Para o despir e para o beijar.

Mas um dia... Mas um dia, Santo Deus,
Ele não veio.
Ela espera olhando a rua...
Meu Deus, que sofrer aquele!
O luar bate nas casas,
O luar bate na rua,
Mas não marca, mas não marca
A sombra dele!...

Procurou-o como doida.
E ao voltar de uma esquina,
Vê-o a ele, acompanhado,
Com outra ao lado, de braço dado.
Gingão, feliz, rufião.
Um ar fadista e bizarro,
Um cravo atrás da orelha
E preso à boca vermelha
O que resta de um cigarro.

Lume e cinza na viela.
Ela vê, que homem aquele!
O lume no peito dela.
A cinza no olhar dele.

E então o ciúme chegou.
Como lume queimou
O seu peito a sangrar.
Foi como vento que veio
Labareda a atear, a fogueira aumentar.
Foi a visão infernal,
A imagem do mal
Que no bairro surgiu.
Foi um amor que jurou.
Que jurou e mentiu.

Ah! Corre em vertigem num grito,
Direita ao maldito que a há-de perder.
Puxa a navalha: Canalha!
Não há quem te valha!
Tu tens de morrer!
Há alarido na viela.
Que mulher aquela!
Que paixão a sua!
E cai um corpo sangrando
Nas pedras da rua.

Mãos carinhosas, generosas,
Que não conhecem o rancor!
Mãos que o Fado compreendem,
E entendem sua dor.
Mãos que não mentem
Quando sentem
Outras mãos p'ra acarinhar.
Mãos que brigam! Que castigam!
Mas que sabem perdoar!

E pouco a pouco o amor regressou.
Como lume queimou
Essas bocas febris.
Foi o amor que voltou
E a desgraça tocou
Para ser mais feliz.
Foi uma luz renascida.
Um sonho na vida
De novo a surgir
Foi o Amor que voltou,
Que voltou a sorrir!

Ah! Há gargalhadas no ar
E o sol a brilhar
Tem gritos de cor.
Há alegria na viela
E em cada janela
Renasce uma flor.
Veio o perdão, e depois,
Felizes os dois
Lá vão lado a lado.
E digam lá se pode ou não
Falar-se o Fado.

OLVIDO e QUIETUD----------------------2007

En el silencio helado
y hondo de la negra noche
se eleva punzante
el canto del cisne moribundo
a expirar en el dolor
con suavidad
En un desafio
surcando el espacio
se junta al suyo
mi dolor
Hace en mi pecho
angustia e cansancio
lloro en vano
mi malogrado amor
Secar mi llanto desearia
pero la cruel pasión
que en mi vive
es fuego que arrasa
y me devora
Volverme insensible
quisiera
Dormir en el lago
donde el cisne
llora
Soñar con la ventura
de otrora

Paz e esquecimento"-------------------1965

No silêncio gélido
e profundo da negra noite
eleva-se pungente
a toada do cisne moribundo
a expirar na dor
suavemente
E num desafio
sulcando o espaço
junta-se à sua a minha dor
Há no meu peito
angústia e cansaço
Pranteio em vão meu malogrado amor
Secar meu pranto desejaria
mas a cruel paixão que em mim mora
é fogo que abrasa e me devora
Tornar-me insensível
quereria
Dormir no lago onde o cisne
chora
Sonhar com a ventura
de outrora

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Empatia

São as palavras
De dor
Sofridas usadas
Brandidas com raiva ou espadas empunhadas
Por dentro do silêncio
Desordenando as emoções
Ou mesmo as de lamento desamparado
Que encontram eco na minha mágoa
De cristal estilhaçado
Que reflecte as dores do mundo


E contudo sei rir
Também às vezes
Visito a alegria
Franqueia-me os portais
Que adentro em ímpetos sôfregos
Deslizando entre a sombra e qualquer lampejo de claridade
Alongo os braços no balanço de clarões espelhados
No ruído rodo a cabeça e rio
E logo lanço devagar os olhos para as frestas sinistras
Buscando alguma escondida
Aflição
Com medo do escuro
Do medo do medo
De fora
Mas já não quero mais
Vou lavar-me no esmalte
Da manhã clara
Recamada pelo oiro dos sonhos
Perlada do suor
Da noite mal dormida
Embora
Mas tranquila.

INSTANTE--------------------------1967

A nota
Que vibra
No arco da manhã
Não a desferirei
Nos meus versos
Não canto
A alegria
Inspirada na beleza
Matinal
Mas tão somente
A certeza
De estar viva
E amar o Sol

quarta-feira, 13 de maio de 2009

PRECE-------------------------------1966

Do meu palácio encantado, a Dor,
Na solidão, sou mística vestal...
Entoo salmos, oro com fervor,
Imploro a Deus um fim p'ra este mal...


Amei os sonhos dos meus vergéis em flor!
Todos sucumbem, maldição fatal!
Já se apagou dos olhos o fulgor:
É mais frágil a Ilusão que o cristal!


Encerrada na Torre da Tristeza
Fujo da Vida que me desprezou...
Uma sombra alada aos meus pés tombou...


A mágoa alacre com a Paz voltou...
Minha alma amarga comovida reza:
"Livrai-me desta Dor, desta Crueza!"

ANGÚSTIA---------------------------1966

Onde estão? Que é feito das minhas lágrimas?
(As que chorei, ferida, já secaram...
Só resta o sulco que amargas cavaram...)
Não essas... As que retenho estranguladas...,


As que afogo num soluço, magoadas,
Fugindo à dor que não aliviaram...
Quero saborear o sal que roubaram
À alma plena de ilusões e amarguras...


Desatar o nó que me prende à vida...
Gritar bem alto a dor que me tortura!
Sepultar p'ra sempre a esperança perdida.


Abandonar, sem pena, a desventura
Da obsessão de uma dor sofrida...
Chorar...Rezar... Ser simples... Boa... Pura...

Resignação-----------------------------1966

Quando a solidão
Me invade
E a dor se infiltra
Em meu ser
Tu vens até mim
Saudade
E recordas-me
A mágoa sentida
Que eu quero esquecer
Essa dor
Que jaz sob as cinzas
Já frias
De uma ilusão perdida
Cicias-me baixinho
(Só eu te posso ouvir...)
As palavras tão ternas
Que sonhei
E jamais ouvi
E eu penso
Que tu és o eco distante
Do amor que palpita
Ainda
Latente no meu peito amargurado
A recordação
De um romance
Falhado antes de começar
E saudade
Para não te culpar
Refugio-me
Numa resignação gelada
Sem esperança
E sem Fé...

Triste..., Mas Serena-------------------------1966

Na pungente
Amargura
Que me gela o ser
Chorei uma lágrima sentida
E pensei em ti
Com carinho enlevo
Com gratidão
Varri do espírito torturado
A mesquinhez egoísta
Do sentir
E a sensação
De te poder olhar
Lealmente sem mácula
Apagou a minha
Angústia
A certeza dolorosa
De te amar
Ditou meus versos puros
Serenamente
Sem exaltação
Desnudei a alma:
Tu estavas nela.

terça-feira, 12 de maio de 2009

---------------------------------------------1978

É desespero
O fulgor dos meus olhos
Velados pelas pálpebras pesadas
Roxas de cio
A angústia
Conduz os meus gestos
Bordando carícias
No teu corpo expectante
É medo
O nó dos meus sentidos
Escondidos
Na dobra do lençol
É raiva
A pressa
Da roupa lasciva
Tombando no chão
E calo gritando
O uivo que finjo
Mas ficou no fundo
Sem me libertar
E tu esperas
e eu cedo
E ficando
Espero e desespero.

sábado, 9 de maio de 2009

Grata compreensão-----------------1973

Com a sabedoria
Que dá a amizade
E a maturidade da experiência
Quisestes defender-me
De mim mesma.
Com o direito da afeição
Evitastes o caminho agreste
Que o orgulho me ditava,
A dignidade indicava
Mas o coração não pedia.
Agora, serena e lúcida
Olho dentro de mim
E oiço ecoar no meu peito
Esta certeza:
Não renunciarei à luta mal começada
Por julgá-la de antemão perdida.
Se me sentir fraca
pedirei à Fé energias e coragem
E prosseguirei.
Não temais.
Saberei erguer-me
Até à vossa amizade:
Sem cobardia, sem desfalecimento,
Sem lágrimas, sequer rancor,
Cônscia da vitória,Não escolherei a amargura
De um destino vazio
Porém mais fácil.
Não! Não vou desistir!
Não posso gelar-me
Numa resignação que não desejo.
Os adversários que desprezo
Não merecerão sequer um sobressalto,
Um pensamento de íntimo desassossego,
Ou um movimento de magoada revolta.
Certa do que valho,
Consciente do que posso,
Íntegra e coerente
Daquilo que sou, sei e quero,
Tendo por armas o amor e o dever,
E por escudo o direito de ser Mulher
E viver,
Arvorando a Juventude em estandarte,
Cerrarei os dentes com força,
E de olhos fitos num longe que me acena
Continuarei
Em direcção a um amanhã
Que será tal como eu o merecer,
E terei límpido, firme e venturoso
Se o souber construir,
E belo se o defender.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

--------------------------------------------------------1972

Só no riso
Como na lágrima
Há qualquer coisa
De intenso
Real e positivo
O comodismo indiferente
não-vale-apenismo
Aparente
Não é mais
Que uma capa
Rota num momento verdadeiro
Desfeita num ímpeto
Desesperado ou corajoso
Ou simplesmente chateado
Farto de engolir
Deglutir
E recalcar


A fuga da realidade
Numa grande bebedeira
"Viagem"--Suicídio
Não conduz a nada
É certo
Traz o selo da cobardia
É frustração acabada
Para quem anseia paz


Como se passará a fronteira?
E a Morte? Será um fim capaz?...

-----------------------------------------------------------1978

É desespero
O fulgor dos meus olhos
Velados pelas pálpebras pesadas
Roxas de cio
A angústia
Conduz os meus gestos
Bordando carícias
No teu corpo expectante
É medo
O nó dos meus sentidos
Escondidos
Na dobra do lençol
É raiva
A pressa
Da roupa lasciva
Tombando no chão
E calo gritando
O uivo que finjo
Mas ficou no fundo
Sem me libertar
E tu esperas
e eu cedo
E ficando
Espero e desespero.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Morte de uma Gaivota-------------------------Abril, 2009

Era uma gaivota branca.
Velozmente e de olhos fechados mergulhava no azul, ou apanhava a primeira oscilação de claridade, ondulando ao vento...
Com as minhas asas abertas à brisa de feição, planava feliz... Ou deixava-me cair a pique na movimentação das águas... Pelo peixe? Sim. Era o meu alimento... Mas do que eu gostava era das ondas... Da frescura, da sensação líquida e macia... Muitas vezes aventureira, mas leve, graciosa, emblema de liberdade.
Um dia vi, lá do cimo, um peixinho apetitoso à tona de água... Fui-me a ele. Despenhei-me de sopetão. Quando ia para amarar... ai que aflição! De repente, estava colada à água do mar. Chamei água àquela sopa nojenta, viscosa, preta e pegajosa? Crude, dizem eles... Uma armadilha mortal, mal cheirosa e repugnante. Esperneei, estrebuchei com falta de ar. Lutei para viver. Não consegui. Arranquei penas e pele. E morri.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Nos 650 anos da morte de Inês de Castro------2005

... Estavas linda Inês posta em sossego... colhendo jubilosa as flores da vida... sem outro cuidar que a sombra dos enganos..., sem outro frémito que, no silêncio marejado de espanto, o sussurro de um nome quase secreto, quase clandestino...
Caíste descuidada nas ciladas do amor, esse teu indizível amor banido, plasmado em dor... (Afinal não conheceste outra rima)...
Foi então que a lâmina severa, intolerante, abriu no teu colo de garça um canal finito a tresmalhar a vida que se escoava e antes crescia tranquila no tear dos dias...
Voltaste, Inês, e voltarás ainda..., mais uma..., outra vez... até que a vertigem da transgressão se transmute em claridade... E o par mais belo e trágico da História Lusa, volvido um só, imatéria platónica, torne em serenidade os românticos arroubos dos amantes, e as madrugadas do Mondego, ou de outro rio qualquer deixem de chorar no orvalho o Amor Maior, a Dádiva, o Delírio de Pedro e Inês...

domingo, 3 de maio de 2009

MARIA---------------------uma sobrevivente--------2006

De onde estava observava. De cima.Fora do corpo. Longe da dor. Da vergonha. Do medo.
Apartada da humilhação. Da agressão. Como se espectadora de si própria. E dele.
Há quanto tempo durava essa invasão de si mesma? Primeiro, um afago leve, quase uma festa..., um gesto mais lento..., uma carícia que sobe pela perna, mal a aflorando, e se detém na coxa magra, de criança... Logo o avançar abusivo, os protestos tapados pela mão enorme e depois calados à bofetada, as ameaças, a chantagem emocional e até a desfaçatez de silenciar o pudor impúbere, os escrúpulos morais e pueris com uma desculpa "religiosa". -Não digas nada... a ninguém. Senão... Está quieta. Deixa. É só um pecadito venial. E eu gosto tanto de ti! Tu não gostas de mim?
Via a camisola interior parda, suada, de grandes cavas... e a tatuagem. Assustadora. Uma caveira de grandes cavernas esburacadas, olhos vazados, por onde fugia e entrava um réptil horripilante. As costas hirsutas e obscenas.
Depois, recolheu-se de novo no fundo do seu eu escarnecido, quase inconsciente, e foi dando conta, gradualmente, das dores, do corpo moído, do íntimo ferido-- que mais que doía, ardia...
Tinha de reagir. Depressa. Levantar-se. Lavar-se e fazer desaparecer os vestígios, as roupas sujas de sangue, a dificuldade no andar, os olhos pisados, doloridos e fundos... O susto.
A mãe não tardava. Regressaria a casa depois do turno no hospital, nas limpezas. Viria cansada, mal humorada, impaciente. Nada receptiva às queixas da filha de sete anos, brutalizada pelo padrasto, que ela mantinha em casa com o seu suor e o seu cio, e passava os dias entre a cama, onde se espojava, a cerveja do frigorífico e o sofá, ou as idas ao café rasca, passar as horas ociosas, alimentando ideias porcas, e os vícios.
Desde que ele continuasse a cumprir no leito, a mãe não ouviria nada contra. E se não a culpasse de o provocar, já seria uma sorte! melhor amordaçar o desgosto.
Pois. Tinha de esconder. Disfarçar. Continuar a viver como se nada fosse. Foi então que inventou o refúgio. Aprendeu a distanciar-se. A dissociar a mente do corpo, agredido, violado, conspurcado... e criou a ilha, e a gruta. Um recanto do espírito onde se abrigava enquanto ele investia contra si e o seu reduto, inocente, apesar de tudo. Maria não sabia verbalizar o que sentia, não sabia definir o medo, a dor, o nojo, a raiva... Defendia-se com as armas que aprendeu a utilizar: a imaginação, algum domínio da mente. Lá, a dor não a atingia de verdade. Recebia-a em baixo, na pobre matéria inerte, objecto de desejo e perversão, de dominação e misogenia para o animal reles com quem tinha de conviver, dia após dia.
Acabada a escola escondia-se pelos cantos, ou fugia para casa da vizinha Amélia, costureira, até ouvir o urro para "a mandar lavar a loiça" ou, insidioso, a puxar pelo braço. Só no fim, quando a largava no chão, ou na enxerga, como um trapo amarfanhado, usado, abandonado, o sofrimento se tornava perceptível, mas não insuportável.
Foi remoendo a raiva, por muito tempo. Tornou-se quase um bicho esquivo e assustadiço. Até que pôde libertar-se.
Um homem bom, respeitador e respeitável, um professor amável e compreensivo, compassivo mesmo, deu-lhe a mão, estimulando-a a construir algo válido com a sua vida, porque confiante nas potencialidades que adivinhava nela. Disse-lhe um dia:- Tu não te apercebes, mas és uma mulher muito forte. Depois disso deu-se conta de que devia ser verdade. Com medo, embora, tomava decisões, algumas bem difíceis. Enfrentava adversidades. Caía, parecia sucumbir, mas sempre se levantava.
Hoje é uma empresária de sucesso, e tirando o facto de se envolver sentimentalmente com homens emocionalmente instáveis (como um padrão de fracasso) que não poderiam corresponder aos seus sentimentos especiais, venceu.
Ontem mesmo assistiu, por acaso, pela televisão, a um debate... e ouviu pela primeira vez uma palavra interessante: resiliência. e riu-se. Só o som insólito da palavra era já uma piada... Resiliência? Fora isso que lhe acontecera? Sobrevivera às provações. e tivera muita sorte. Pelo seu hábito de sair de si, distanciar-se das agressões, podia ter ficado esquisofrénica. Com dupla personalidade...Mas não. Contra todas as probabilidades prosseguira com a sua vida.
Hipersensível, quando, tantas vezes, a existência parecia encaminhá-la para o abismo, o seu sarcasmo natural vinha ao de cima, nivelava e relativizava as situações... Levava algum tempo a recuperar o equilíbrio, a redifinir os limites, mas avançava. Há muito percebera que isto não é uma tragédia, mas uma comédia parva, de mau gosto, só que havia alturas em que não lhe achava a menor graça.
Adiante. Com toda a mágoa residual que lhe condicionava a postura, maravilhava-se agora, ao dar-se conta de que esse facto não a impedira de amar.
Não ter sido amada era algo que aceitava com pena, mas naturalidade.
e dentro de si sentia que o seu melhor continuava intacto, que a criança franzina e carente de um dia não se tornara azeda ou desconfiada... A ternura brotava dela sem constrangimento... E, apesar de tudo, uma incrível credulidade infantil, como se nada a prevenisse ou preparasse levava-a, não raro, a entregas desarmadas e a momentos de ridícula fragilidade... De vulnerável dor...
Sobrevivera.
Então, porque, como sempre e tantos anos passados, a água do duche, quase a ferver, lhe caía com força no corpo,demoradamente, e ela se esfregava continuamente até a pele arder, as mucosas inflamarem, querendo arrancar de si o cheiro, o toque, a mácula, a culpa?
Resiliência..., não é assim que se chama? Então o vazio no peito, o assobio para o ar? Porque não se contenta com praliné, já que não pode ter chocolate?
--Atirou para trás a cabeça, numa gargalhada... Parecia um soluço?... Deixá-lo... Mal se notaria, se alguém o ouvisse.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Desabafo

Penso que os meus escritos não valem nada... Que sou aborrecida e desinteressante... Nunca tive uma reacção vinda do outro lado. Não é verdade. Já um poeta me contactou, mas abstendo-se de comentar, tão inúteis e mal construídos lhe devem ter parecido. Quando tinha o outro blogue, com o mesmo nome, de vez em quando escreviam comentários, que eu publicava, mas depois tive dificuldades em continuá-lo,e assim apaguei-o, depois de transferir os poemas para este. Será que ofendi alguém? Peço desculpa, pois não tive intenção... Também não estou a pôr-me a jeito... Mas gostava que me lessem, que dissessem alguma coisa... Bem ou mal. Pode ser? Obrigada. Milly

A ALFACE--------------------------------------1977

Aparentemente um bilhete tão simples e lacónico não valia aquela reacção brusca de desespero impotente... Mas era assim mesmo que se sentia: esmagado-- em pânico!
Olhou novamente a pequena nota pousada despudoradamente em cima da cama: "Fui às compras. Rita." E de novo cerrou os punhos com força.
Conhecia-a bem, no seu papel assumido de consumidora inconsciente e compulsiva, do género de «tirar la casa por la ventana»... Via-a, contente e ligeira, passando em revista os escaparates do grande armazém, e detendo-se neste balcão, ou naquele, casual e displicente, comprando à toa, sem um plano, uma necessidade, ou um desejo real. Comprando pelo simples prazer de adquirir, aqui um bâton, acolá um perfume, mais à frente um casaco, uma revista..., depois umas meias..., uns sapatos, um lenço...,um quadro..., uns brincos... et voilá-- um livro...
E se a disposição fosse melancólica, o estrago seria maior ainda, e as cifras encavalitar-se-iam na caixa registadora, sem que ela se desse conta... E, oh lembrança atroz!, se Rita tivesse entrado numa boutique-- arejando o dinheiro de plástico, ou, horror!, se se tivesse lembrado de ir até ao Centro Comercial, onde tinha crédito permanente em algumas lojas?... De lá viria ela carregada de embrulhos e caixinhas, alegre e inocente, sem fazer ideia do que debitara na já avultada conta mensal... Não! Decididamente, não! Não podia ser! Mas vendo bem...
Para que lançara ele aquela piada de mau gosto ao beberricarem café...? Não fora intencional, claro, mas demasiado conhecia ele os toques que ela acusava...
Mas talvez... Sim, bem, o Centro Comercial ficava precisamente do outro lado da cidade... E com este trânsito... Lembrou-se de reparar se o carro dela estava estacionado onde o deixara na véspera.
Não tinha completado o gesto de levantar toda a sua altura desajeitada da poltrona onde se afundara... e uma chave rodou na fechadura.
--"Mário! Já chegaste?"
Calou-se, na defensiva, esperando a aterradora aparição.
--"Olá, querido! Pensava demorar-me mais, mas a sorte foi não haver quase ninguém na frutaria da esquina. Comprei uma bela alface para o jantar. Que sorte, hein!?"


Ora vejam a salada que Rita preparou para o Mário:


"SALADA DE ALFACE"
Tomam-se as folhas de alface bem tenras e viçosas; lavam-se, muito bem lavadas, em água corrente. Junta-se-lhes um pouco de pimpinela (e eu que nem suspeito que raio de erva ou produto hortícola será isto... Só me lembro da Pimpinela Escarlate da minha infância), rodelas finas de cebola, pétalas de flores de chagas vermelhas, e tempera-se com um molho feito com azeite, vinagre e sal refinado (pouco), ligado à parte, que se deita na hora de servir.
Não havendo pimpinela, pode temperar-se o molho com vinagre de estragão em vez do vinagre comum, o que lhe dará um sabor único, muito especial e agradável.


Bom apetite! E não façam muitas compras, que o tempo não está para folias... Dediquem-se ao artesanato para espantar as sombras da melancolia... É outra terapia, e mais inofensiva para a carteira e a economia doméstica...

quinta-feira, 30 de abril de 2009

LEMBRANDO...

Flutuo no azul
nos dedos entrelaçam-se
limos e algas
qualquer réstea de luz
filtrada pela líquida
claridade
que oscila arrepia e afaga
ultrapassam-me miríades de peixes
multicores
roçagam-me a pele
e agitam o silêncio
ondulando na água
E agora?
Onde a calma?

quinta-feira, 23 de abril de 2009

GLÁDIO VITORIOSO--------------------1967

Consciente
Do seu nada
O Homem eleva
Os olhos
E anseia o infinito...


Busca o almo
Do espaço
Em vão
No azul sidério...
Penetra o sigilo
Esfíngico
Dos orbes
E regressa insatisfeito
À "digna" insignificância...


Orgulhoso e suspeito
Este ser que nada alcança
Procura com as mãos impuras
-Instigadas inseguras ancoradas-
Abarcar todo o Universo
E reduzir a incógnita das coisas
À razão...


Mas a audácia
Que o impulsiona
É um facho que arde vigilante
Na névoa desconhecida
É loucura... Mão firme que apaga
Da hesitante rota
O sabor amargo da derrota...!

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Março de 1968

Assisti a um Crime de Estado.
E ouvi. Sobretudo ouvi. E quiseram silenciar-me.
Era então repórter de "A VOZ DE MOÇAMBIQUE". O artigo que escrevi no nervo emocionado, mas tentando já a insenção e distanciamento devido a uma jornalista, sobre o pouco que presenciara e o muito que adivinhara da minha varanda, à noite, na Avenida de Angola: tropel de passos apressados, corrida, gritos abafados, tiros... -Impedida de descer pelos meus pais. Foi censurado, mandado retirar da edição pelo Capitão Matos, do Gabinete de Censura da Polícia. Com a recomendação de me dedicar futuramente a temas mais leves, de acordo com o meu género e idade.
Na manhã do dia seguinte, na Avenida de Angola, frente ao bar "Vasco da Gama", a vida prosseguia normal e igual a outros quotidianos, sem vestígios da tragédia nocturna.


O homem morreu
Os olhos eram duas janelas
Rasgadas na noite
Bem no fundo
Uma criança espreitava nelas
E chorava de incompreensão


As balas na trajectória do ódio
Encontraram a carne quente do HOMEM
Cortaram-lhe a vida
Inundaram a noite de dor e de sangue


Porquê se eram irmãos?

quarta-feira, 15 de abril de 2009

ANOITECER--------------------1966

A tarde suspira e agoniza
A natureza funde-se num estertor
Uniforme e ensanguentada no poente...
Há nos seres criados uma inquietude
Ansiosa como se esperar a mortalha negra
Da noite fosse ansiar uma libertação...
Mas não há sofrimento na agonia da tarde:
Apenas desprendimento um impreciso
Halo de saudade...
E as sombras veladas
Infiltram-se fundo
Na essência das coisas,
Envolvem tudo e todos
No mesmo amplexo
De fraternidade e compreensão...
Em êxtase da noite adormecida
Evola-se ténue uma sentida prece...
Flutuam esparsos no ar pedaços de hinos
E a lua estremecendo pálida e inquieta
Estende e alonga os dedos álgidos de prata
E mergulha-os no mar...