domingo, 3 de maio de 2009

MARIA---------------------uma sobrevivente--------2006

De onde estava observava. De cima.Fora do corpo. Longe da dor. Da vergonha. Do medo.
Apartada da humilhação. Da agressão. Como se espectadora de si própria. E dele.
Há quanto tempo durava essa invasão de si mesma? Primeiro, um afago leve, quase uma festa..., um gesto mais lento..., uma carícia que sobe pela perna, mal a aflorando, e se detém na coxa magra, de criança... Logo o avançar abusivo, os protestos tapados pela mão enorme e depois calados à bofetada, as ameaças, a chantagem emocional e até a desfaçatez de silenciar o pudor impúbere, os escrúpulos morais e pueris com uma desculpa "religiosa". -Não digas nada... a ninguém. Senão... Está quieta. Deixa. É só um pecadito venial. E eu gosto tanto de ti! Tu não gostas de mim?
Via a camisola interior parda, suada, de grandes cavas... e a tatuagem. Assustadora. Uma caveira de grandes cavernas esburacadas, olhos vazados, por onde fugia e entrava um réptil horripilante. As costas hirsutas e obscenas.
Depois, recolheu-se de novo no fundo do seu eu escarnecido, quase inconsciente, e foi dando conta, gradualmente, das dores, do corpo moído, do íntimo ferido-- que mais que doía, ardia...
Tinha de reagir. Depressa. Levantar-se. Lavar-se e fazer desaparecer os vestígios, as roupas sujas de sangue, a dificuldade no andar, os olhos pisados, doloridos e fundos... O susto.
A mãe não tardava. Regressaria a casa depois do turno no hospital, nas limpezas. Viria cansada, mal humorada, impaciente. Nada receptiva às queixas da filha de sete anos, brutalizada pelo padrasto, que ela mantinha em casa com o seu suor e o seu cio, e passava os dias entre a cama, onde se espojava, a cerveja do frigorífico e o sofá, ou as idas ao café rasca, passar as horas ociosas, alimentando ideias porcas, e os vícios.
Desde que ele continuasse a cumprir no leito, a mãe não ouviria nada contra. E se não a culpasse de o provocar, já seria uma sorte! melhor amordaçar o desgosto.
Pois. Tinha de esconder. Disfarçar. Continuar a viver como se nada fosse. Foi então que inventou o refúgio. Aprendeu a distanciar-se. A dissociar a mente do corpo, agredido, violado, conspurcado... e criou a ilha, e a gruta. Um recanto do espírito onde se abrigava enquanto ele investia contra si e o seu reduto, inocente, apesar de tudo. Maria não sabia verbalizar o que sentia, não sabia definir o medo, a dor, o nojo, a raiva... Defendia-se com as armas que aprendeu a utilizar: a imaginação, algum domínio da mente. Lá, a dor não a atingia de verdade. Recebia-a em baixo, na pobre matéria inerte, objecto de desejo e perversão, de dominação e misogenia para o animal reles com quem tinha de conviver, dia após dia.
Acabada a escola escondia-se pelos cantos, ou fugia para casa da vizinha Amélia, costureira, até ouvir o urro para "a mandar lavar a loiça" ou, insidioso, a puxar pelo braço. Só no fim, quando a largava no chão, ou na enxerga, como um trapo amarfanhado, usado, abandonado, o sofrimento se tornava perceptível, mas não insuportável.
Foi remoendo a raiva, por muito tempo. Tornou-se quase um bicho esquivo e assustadiço. Até que pôde libertar-se.
Um homem bom, respeitador e respeitável, um professor amável e compreensivo, compassivo mesmo, deu-lhe a mão, estimulando-a a construir algo válido com a sua vida, porque confiante nas potencialidades que adivinhava nela. Disse-lhe um dia:- Tu não te apercebes, mas és uma mulher muito forte. Depois disso deu-se conta de que devia ser verdade. Com medo, embora, tomava decisões, algumas bem difíceis. Enfrentava adversidades. Caía, parecia sucumbir, mas sempre se levantava.
Hoje é uma empresária de sucesso, e tirando o facto de se envolver sentimentalmente com homens emocionalmente instáveis (como um padrão de fracasso) que não poderiam corresponder aos seus sentimentos especiais, venceu.
Ontem mesmo assistiu, por acaso, pela televisão, a um debate... e ouviu pela primeira vez uma palavra interessante: resiliência. e riu-se. Só o som insólito da palavra era já uma piada... Resiliência? Fora isso que lhe acontecera? Sobrevivera às provações. e tivera muita sorte. Pelo seu hábito de sair de si, distanciar-se das agressões, podia ter ficado esquisofrénica. Com dupla personalidade...Mas não. Contra todas as probabilidades prosseguira com a sua vida.
Hipersensível, quando, tantas vezes, a existência parecia encaminhá-la para o abismo, o seu sarcasmo natural vinha ao de cima, nivelava e relativizava as situações... Levava algum tempo a recuperar o equilíbrio, a redifinir os limites, mas avançava. Há muito percebera que isto não é uma tragédia, mas uma comédia parva, de mau gosto, só que havia alturas em que não lhe achava a menor graça.
Adiante. Com toda a mágoa residual que lhe condicionava a postura, maravilhava-se agora, ao dar-se conta de que esse facto não a impedira de amar.
Não ter sido amada era algo que aceitava com pena, mas naturalidade.
e dentro de si sentia que o seu melhor continuava intacto, que a criança franzina e carente de um dia não se tornara azeda ou desconfiada... A ternura brotava dela sem constrangimento... E, apesar de tudo, uma incrível credulidade infantil, como se nada a prevenisse ou preparasse levava-a, não raro, a entregas desarmadas e a momentos de ridícula fragilidade... De vulnerável dor...
Sobrevivera.
Então, porque, como sempre e tantos anos passados, a água do duche, quase a ferver, lhe caía com força no corpo,demoradamente, e ela se esfregava continuamente até a pele arder, as mucosas inflamarem, querendo arrancar de si o cheiro, o toque, a mácula, a culpa?
Resiliência..., não é assim que se chama? Então o vazio no peito, o assobio para o ar? Porque não se contenta com praliné, já que não pode ter chocolate?
--Atirou para trás a cabeça, numa gargalhada... Parecia um soluço?... Deixá-lo... Mal se notaria, se alguém o ouvisse.

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