sexta-feira, 15 de maio de 2009

FADO FALADO----------João Villaret

Fado triste. Fado negro das vielas
Onde a noite quando passa
Leva mais tempo a passar.
Ouve-se a voz, voz inspirada
De uma raça
Que o mundo em fora nos levou
P'lo azul do mar.
Se o Fado se canta e chora
Também se pode falar.

Uma história bem singela:
Bairro antigo, uma viela,
Um marinheiro gingão,
E a Emília Cigarreira,
Qu'inda tinha mais virtude
Que a própria Rosa Maria
Em dias de procissão
Da Senhora da Saúde.

Os beijos que ele lhe dava
Trazia-os ele de longe,
Trazia-os ele do mar.
Eram bravios e salgados.
E ao regressar à tardinha
O mulherio tagarela
De todo o bairro de Alfama
Cochichava em segredinhos
Que os sapatos dele e dela
Dormiam muito juntinhos
Debaixo da mesma cama.

Pela janela da Emília entrava a Lua...
E a guitarra, à esquina de uma rua,
Gemia dolente a soluçar...
E lá em casa... Mãos amorosas na guitarra
Que desgarra dor bizarra.
Mãos frementes de desejo.
Impacientes como um beijo.
Mãos de Fado, de pecado,
A guitarra a afagar
Como um corpo de mulher,
Para o despir e para o beijar.

Mas um dia... Mas um dia, Santo Deus,
Ele não veio.
Ela espera olhando a rua...
Meu Deus, que sofrer aquele!
O luar bate nas casas,
O luar bate na rua,
Mas não marca, mas não marca
A sombra dele!...

Procurou-o como doida.
E ao voltar de uma esquina,
Vê-o a ele, acompanhado,
Com outra ao lado, de braço dado.
Gingão, feliz, rufião.
Um ar fadista e bizarro,
Um cravo atrás da orelha
E preso à boca vermelha
O que resta de um cigarro.

Lume e cinza na viela.
Ela vê, que homem aquele!
O lume no peito dela.
A cinza no olhar dele.

E então o ciúme chegou.
Como lume queimou
O seu peito a sangrar.
Foi como vento que veio
Labareda a atear, a fogueira aumentar.
Foi a visão infernal,
A imagem do mal
Que no bairro surgiu.
Foi um amor que jurou.
Que jurou e mentiu.

Ah! Corre em vertigem num grito,
Direita ao maldito que a há-de perder.
Puxa a navalha: Canalha!
Não há quem te valha!
Tu tens de morrer!
Há alarido na viela.
Que mulher aquela!
Que paixão a sua!
E cai um corpo sangrando
Nas pedras da rua.

Mãos carinhosas, generosas,
Que não conhecem o rancor!
Mãos que o Fado compreendem,
E entendem sua dor.
Mãos que não mentem
Quando sentem
Outras mãos p'ra acarinhar.
Mãos que brigam! Que castigam!
Mas que sabem perdoar!

E pouco a pouco o amor regressou.
Como lume queimou
Essas bocas febris.
Foi o amor que voltou
E a desgraça tocou
Para ser mais feliz.
Foi uma luz renascida.
Um sonho na vida
De novo a surgir
Foi o Amor que voltou,
Que voltou a sorrir!

Ah! Há gargalhadas no ar
E o sol a brilhar
Tem gritos de cor.
Há alegria na viela
E em cada janela
Renasce uma flor.
Veio o perdão, e depois,
Felizes os dois
Lá vão lado a lado.
E digam lá se pode ou não
Falar-se o Fado.

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