quarta-feira, 21 de outubro de 2009

"CÂNTICO NEGRO"_______José Régio

Vem por aqui! _ dizem-me alguns
Com olhos doces, estendendo-me os braços
E seguros de que seria bom Que eu os ouvisse
Quando me dizem_ «vem por aqui!»
Eu olho-os com olhos lassos,
Há nos meus olhos ironias e cansaços,
E cruzo os braços,
E nunca vou por aí.

A minha glória é esta: criar desumanidade.
Não acompanhar ninguém.
Que eu vivo com o mesmo sem vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.
Se vim ao mundo foi só p'ra desflorar florestas virgens
E desenhar meus próprios pés
Na areia inexplorada.
O mais que faço não vale nada.

Não, não vou por aí!
Só vou por onde me levam
Meus próprios passos.
Se ao que busco saber
Nenhum de vós responde,
Porque me repetis_ Vem por aqui?!
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí.

Corre nas vossas veias
Sangue velho dos avós
E vós amais o que é fácil.
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo a Loucura, as Torrentes, os Desertos.
Como pois sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas
E coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?

Ide! Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos
E tendes regras e tratados
E filósofos e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a como um facho
A arder na noite escura
E sinto desespero e sal
E cânticos nos lábios.

Deus e o Diabo é que me guiam.
Mais ninguém.
Todos tiveram pai.
Todos tiveram mãe. Mas eu,
Que nunca principio nem acabo
Sou filho do amor que há
Entre Deus e o Diabo.

Ah! Que ninguém me dê
Piedosas intenções.
Ninguém me peça definições.
Ninguém me diga: vem por aqui!

A minha vida é um vendaval
Que se soltou. É uma onda
Que se alevantou.
É um átomo a mais
Que se animou.
Não sei por onde vou.
Não sei para onde vou.
Sei que não vou por aí!

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