sábado, 15 de novembro de 2008

MEMÓRIAS DE ÁFRICA

Migrei para Moçambique aos 14 anos, com os meus pais, irmão e uma avó, que então me parecia muito velha.
Queria muito ir; o espírito inquieto e espartilhado numa educação excessivamente cuidadosa, eufemismo de sexista e severa, ansiava por horizontes mais largos, por uma vivência mais solta, por convívios mais enriquecedores. Deus sabe as espectativas que levava!...Talvez de viver a vida como uma aventura... (Não se esqueçam de que eu tinha então 14 anos!)
No entanto, a saudade dos lugares, das amiguinhas do liceu, da família que ficava, de mim, e o medo do desconhecido, sulcavam-me as faces de lágrimas de desgosto e esperança ao mesmo tempo. Assim foi que, na longa viagem de navio (18 dias no paquete "Infante D. Henrique"---fantástica embarcação) essas lágrimas secaram, e os pequenos prazeres inocentes e discretos da travessia, furtados com sensatez à vigilância paterna,abriram no meu rostinho de menina um sorrisito envergonhado.
Lá, foi um deslumbramento logo à chegada.
A modernidade dos prédios altos encimados por terraços, as largas avenidas de traçado geométrico e exacto, de alcatrão negro e brilhante após as súbitas e breves chuvadas, ladeados por longos passeios de terra batida bordados de acácias rubras, de jacarandás frondosos, dando a tudo uma atmosfera de sonho e encantamento...
A multidão nas ruas, gárrula e garrida,os negros apressados, quantas vezes de rádio pendurado no braço, música alta, vibrante, sensual e sincopada, tricotando gorros ou longos cachecóis, tantas vezes enquanto galgavam em passos lestos as avenidas , rumo ao trabalho que os esperava na estiva, no porto, ou num turno pesado em qualquer padaria ou construção manhã cedo, sem se enganarem, sem deixarem cair uma malha, sem trocarem as voltas ao fio colorido...
Os batuques, que desde logo me fizeram vibrar, com as suas batidas hipnóticas e intensas que me inundavam a mente, entravam pelos pés, subiam pelo sangue e me envolviam inteira, num chamamento irresistível que me levava a desacatar inconscientemente a proibição familiar, a furar a barreira de basbaques e a sacudir o corpo ao compasso das timbilas, marimbas ou tambores. Ainda hoje essas músicas me tocam irremediavelmente...
As vendedeiras nas ruas... o cheiro das maçarocas de milho a ser assadas ali mesmo, no passeio, o sabor doce e acre das gingivas cor de ferrugem... O espreitar furtivo da Mafalala que fervilhava atrás do meu quintal... Do segundo andar onde vivia observava interessada os afazeres quotidianos que me eram então estranhos, porque recém chegada da Metrópole: As mulheres que se sentavam por ali, no terreiro, amamentando bebés que traziam às costas, ou peneiravam o milho acabado de moer no pilão, ou cozinhavam em pequenas fogueiras,as crianças que brincavam em jogos tradicionais, fazendo algazarra... Lembro-me da melopeia de um desses jogos rítmicos, de meninas, semelhante a outos em todo o mundo, por certo, mas de cariz tão próprio: --Amatuêtuêtuê-amatuêtuê la maranga tuê... (Não faço ideia do significado das palavras, ou se seriam apenas onomatopeias inconsistentes e divertidas...) Tudo, tudo me encantava!
A delicadeza das mulheres indianas de saris vaporosos,tranças negras brilhantes e perfumadas e pingo sanguíneo no meio da testa, sobre o nariz, e não raras vezes piercings ornamentando uma das narinas..., misteriosas e belas... As crianças, espantosamente lindas, comoventes, os negrinhos, os chinesinhos, os indús de olheiras já pintadas e sedutoras...
As lojas chinesas, com artigos idos de Macau ou Taiwan, recheadas de maravilhas e mistério...
O bulício alegre dos bazares, sobretudo o Xipamanine, o mercado indígena... Os cheiros exóticos a especiarias, a fruta madura, a terra molhada por aguaceiros diluvianos e breves; o calor que se evolava em ondas do solo encharcado, que logo secava... Os bairros nativos, do caniço, interditos por questões de segurança e preconceito, mas onde a minha desorientação crónica me levava, às vezes, a perder-me, providencialmente... O convívio tão próximo e sem cerimónia, a descontracção dos trajes, da postura; a solidariedade.
As estradas longas, a perder de vista, e os sítios "perto"__ìamos, por vezes tomar café ao Xai- Xai, a 200km__normal. De uma vila, no mato, onde vivia e trabalhava, Mabalane, deslocava-me frequentemente a L.M. para comprar cadernos e livros para a escola, a 450km, ida e volta no mesmo dia, de carro ou de comboio a carvão. E às 7.30 da manhã já estava de novo nas aulas. É verdade que era jovem, mas não era só isso... Talvez a largueza dos horizontes relativizassem as distâncias, ou então são os metros e quilómetros que são "mais compridos" na Europa!... O vasto território cria, decerto essa ilusão de perspectiva...!
As palmeiras e casuarinas, os embondeiros, as micaias... Os mares de capim ondulante... As queimadas...
Que saudades da familiaridade do trato... Do crescer solto dos meus filhos... Do mar límpido e morno ali tão perto!...
Valorizo muito tudo isto que vivi e ninguém poderá tirar-me. E o enriquecimento pessoal que essas vivências me trouxeram. A possibilidade de trilhar caminhos, depois abandonados mas que recuperei recentemente, não tem preço.
Contudo, não me falem em lugares, ruas, avenidas, jardins da "minha cidade ". Apaguei tudo, voluntariamente, para não sofrer... Mas o baú de sentimentos, de emoções e sensações é aberto de quando em quando, e neles me recreio, me recrio e me refaço.
Alguém, dos que viveram em África e nela foram inoculados pelo vírus da magia, (xicuembo), ou dos que não a conhecendo a imaginam e sentem atracção, estranharão esta imensa saudade de que vos falo?
Não temo voltar lá. Não sei se o farei. Sei que tudo o que amo me espera: a doçura do viver, a simpatia das gentes, a partilha, o sol enorme, as madrugadas serenas mas activas, a noite que cai de repente, a cacimba, os aromas e as cores estão lá. E o viver mais demorado, os ritmos quentes... Nada disso pode ter desaparecido. É a alma de África. São eles que recordo com nostalgia e preenchem a minha saudade.
Se em gelos polares me desnorteio sem a minha estrela guia, sinto tanto a falta do Cruzeiro do Sul e dos céus limpos da minha África!
Ao verem-me desfilar, frequentemente de violeta ou lilás, não se admirem... Às vezes é a falta dos jacarandás, ou da sua ambiência... É a cor da ausência da minha cidade de eleição... Onde até fui feliz, e não sabia. Às vezes saio de magenta, a impossível cor das buganvílias...

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