sábado, 22 de novembro de 2008

ANÁLISE ÍNTIMA---1971

Ah que absurda
Que monótona
Que errada
É a vida


Uma lágrima a escorrer
Por raiva do que não sou
Do que fui
Do que vivo contrafeita
E do que eu queria ser
Um palavrão sussurrado
Por vergonha de o bradar
Um soluço desmanchado
Um pontapé pelo ar
Um breve passo de dança
Que estético não chega a ser
Um movimento apressado
Uma volta
Um floreado
Um passo desesperado
Que imenso significado
Eu queria preencher
E a hipocrisia do sonho
E o tédio de viver
Uma vida direitinha
Normalíssima
Mesquinha
Onde esta imensa tortura
Decerto não vai caber


Eu devia andar contente
Feliz
Como toda a gente
Que conseguiu
O que quis


Mas eu não sei o que sou
De onde venho, onde estou
Sequer para onde vou
Sei de um saber que adivinho
Sei que o melhor de mim
E o pior que sou
Rompe os diques da decência
Da triste realidade
E vibro autêntica
Presente e viva longe da normalidade
E sou um pouco de tudo
Sou a Morte e sou a Vida
Sou Poeta e Vagabundo
A dor e a serenidade
Sou soldado num assalto
Sou activista da paz
Sou boémia debochada
Sou o inimigo escondido
À coca dentro de mim
Sou perdida e mal achada
Sou o garoto com fome
Sou o rico que desprezo
Mas cujo bem estar invejo
E cujo tédio me dá dó
Sou o homem que tropeça
À procura da Verdade
E sou aquele que A tem
Sou o ateu que não crê
Sou revoltada por ser
(Uma atitude talvez
Ou quem sabe convicção)
Sou cobarde ressentida
Sou maníaca perseguida
Ridícula visionária
Com anseios de grandeza
E artifícios de ilusão
E porquê esta angústia
que tão bem conheço
Este perfurar o cérebro
Maltratar vãmente o coração
Este filtrar as imagens
Depurando-as
Este sofrer sem razão
esta indolência desdenhosa
Esta indiferença passiva
Volvida entusiasmo por tantos ideais
Que só existem na imaginação
Este desespero animal
Esta sensibilidade doentia irracional
Esta humildade tão altiva e distante
Esta ansiedade que me possui inteira
Esta necessidade aguda
De me conhecer
Para ser
Este desejo obscuro
De ver nos fachos
Que doei à vida
Ou que a vida acendeu
P'ra mim
Uma flecha de infinito
A tocar o sonho
Que me amargurou
Uma luz brilhante
Mostrando o caminho
Que não realizei
Por medo
Por medo
Por não ser capaz


E se um dia o conseguir
E nos olhos dos meus filhos
Vir a chama para que vivi
Valerá a pena?
Não verei também desgosto
Quiçás insatisfação
Por na herança
Que lhes quis deixar
Eu ter misturado
A angústia o sofrimento a agonia
A incompreensão?
Mas não...
Eu sei que a Vida
Lhes será tão mais bela
Quanto mais vencida
E o ideal perseguido
Ser-lhes-á mais fascinante
Quanto mais além!

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