quinta-feira, 15 de julho de 2010

ASSERÇÂO

Deixou na pia a loiça suja a amolecer devagar, na água com detergente. Esqueceu-se de jantar. Mas não se importou.
Livre de remoques, ditos ofensivos ou olhares reprovadores de soslaio, sobrolhos franzidos, redescobria a paz de viver ao seu ritmo, pensando em si, esquecendo de vez os moldes rígidos em que a vida, ou os outros, pretenderam formatá-la, e onde nunca coubera, desajustada e infeliz.
Recuperou prazeres perdidos, num tempo só seu.
Neste momento sem culpa lia um romance, concentrada, numa fruição crescente, fascinada pelo percurso singular da personagem feminina, que reencontrara no fim e no fundo da viagem, no escoar do Verão, nas ondas de calor, no deslumbramento da claridade, a intimidade, a compreensão, o carinho, perdidos na lufa-lufa quotidiana.
Mas havia amor. Sempre houvera. Sem tempo, mas apenas adormecido. E a história terminara de forma trágica... Tão romântica. Tão bonita!
E ela? Porque não vivera nada assim? E se tivesse sido diferente? Teria tido alma e sensualidade para segurar, fazer crescer, e preservar um afecto como o que fantasiava?
Será que existiam uma tal paz e aderência perfeitas? Ou mesmo apenas satisfatórias?
Já o vislumbrara, o Amor vivido, na existência de outros... Raro, mas real. Possível. Ou não era? Será que merecera? Ou era apenas louca?
Deixou a leitura, perdida nos seus devaneios.
... Uma lembrança amarga, de outra vida, assombrou-a. Atingiu-a a violência do pensamento subversivo. Como então, aterrou-a a imagem. Não. Não era digno dela. Nem dele.
Foi quando pôs um ponto final na submissão descontente, e determinou mudar, com avidez acautelada.
Uma luz bruxuleava algures na penumbra do corredor, suspensa num fio de realidade irresistível. Levantou-se; dirigiu-se ao espelho. Catou do fundo da gaveta um bâton vermelho e usado com que riscou o vidro, esmagando-o:
_Eu amo-me.
E acreditou.

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