terça-feira, 27 de julho de 2010

EPÍSTOLA A ÁLVARO SALEMA -----------Jorge de Sena

Dizes que não me entendes, sobretudo na vida.
Que sabes tu da vida? E dos que falam dela?
Ou será que te espantas de que eu não obedeça
às ordens de partidos a que não pertenço?
Deixemo-nos de histórias, meu amigo.
É triste e é cómico, mas é preciso dizer-se:
A conivência torpe com a humanidade,
no que ela tem de vil, de ignóbil, de mesquinho,
a conivência com este espectáculo hediondo
de um mundo de traição, perfídia, malignidade reles,
e sobretudo estupidez triunfante, não é possível.
Não penses_ se é que pensas_ que te escapas disso,
imaginando que rectamente cumpres um dever
ao fingir que não entendes... Seja qual for a nobre causa,
a santa causa, não escapas à vileza e à mesquinhez:
a conivência não é possível: nada que seja nobre,
nada que seja santo, pode resistir
a tão porcas vizinhanças. Se uma causa, um homem,uma pátria,
precisam de sujar a dignidade e a integridade de alguém
para salvar-se, que há que salvar neles?
E que fica em ti que não seja ignóbil?
Não é a dignidade que se afunda em complacências,
mas esses que chamam traidores a quem a traição não serve
de embuste à inteireza.

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