quinta-feira, 25 de março de 2010

VIRAGEM

Nunca suspeitara chegar à rua. Uma situação às vezes estranha, ou incómoda, mas não desagradável. De todo.
Após uma vida de funcionária pública sujeita a horários, obrigações, tarefas maçadoras e repetitivas. Que até acreditava, por vezes, sem utilidade.
Em casa, a velha mãe. Uma companhia, da qual cuidara se não desveladamente, pelo menos com o dever filial cumprido até ao limite das suas forças, da sua sanidade mental.
Depois, ficara livre. Assim. De repente e ao mesmo tempo.
A mãe morrera, sem grande penar físico, mentalmente afectada por uma demência senil, a princípio ligeira e que se agravara gradualmente. Tudo findara serenamente. E hei-la só.
E aposentara-se. A reforma chegara numa idade ainda compatível com o seu desejo de liberdade.
Passou-se.
Largou tudo. A casita antiga. A segurança relativa da porta fechada à chave. As rotinas confortáveis e monótonas da sua vidinha quieta.
Vestiu-se de andrajos. Foi para a rua. Encontrou poiso certo numa esquina perto de um cruzamento e de uma pequena igreja. Arranjou protecção num mendigo solitário como ela, com semelhante sentido de humor, com quem simpatizara e dividia a bucha. Estendeu a mão.
Custou-lhe, ao princípio. Mas a vertigem da transgressão tomou-a e deu-lhe uma euforia interior, o sabor impagável da ironia de quem fora intimada a cumprir as regras dos outros a vida toda, e agora soubera chutar as boas maneiras, o conforto de um nome.
A medo, com astúcia, ganhou trejeitos, manhas, saberes. Com grande lata arrancava dos transeuntes um espólio confortável, que lhe dava para alimentar o corpo diariamente.
A reforma continuava a pingar religiosamente na conta do banco a cada 18 ou 19 do mês. Mas não lhe tocava. Esse tesouro acumulava, sem lhe gastar um euro, e servia para fazer viagens interessantes de vez em quando. Era o seu gosto de evasão, o seu prazer secreto. Quase correra o mundo!
Dormir? Dormia num escritório abandonado, por sobre um armazém. Apelava à agilidade que lhe restara para se içar até ao seu refúgio improvável, pois o acesso não era óbvio nem fácil, como convinha.
Lá guardava algumas roupas da vida anterior, peças simples, mas com decoro. Três livros, que esperava reler quando tivesse tempo. Uma mala repleta de sonhos de aventuras por viver. E no canto mais sombrio do compartimento degradado esperava-a sempre uma homérica gargalhada pela volta imensa que dera à vida!
Recusa preocupar-se. Vive um dia de cada vez, o melhor que pode. Pode até dizer que é feliz. Tem a vida que quer. Faz o que bem entende.
E mentaliza um grande manguito para o cinzentismo reprovador, sem graça, dos sisudos. Ah! Se eles soubessem!

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